Um reporter na China Flavio Alcaraz Gomes

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

A longa espera

Levei quatro anos para conseguir um visto de entrada para China - e à última hora

quase não embarco devido à sabotagem russa. De onde se depreende que a guerra fria entre

as duas superpotências comunistas chega a diabólicas e tentaculares minúcias, como essa

de uma delas tentar impedir que um simples jornalista de uma Província do Brasil conheça

o território da outra.

Mas comecemos pelo princípio: em novembro de 1971, pouco depois de Nixon ter

anunciado sua visita à República Federal da China, e levando como garantia a palavra e o

telex do representante da France Press no Rio, monsieur François Lara, de que a sua

Agência em Paris me obteria em 24 horas a autorização de viajar para Pequim - me toquei

para a França. Ali, o diretor da F.P., para assuntos da Ásia, riu na, minha cara, disse que

monsieur Lara estava completement fou, completamente louco, que a China continuava

hermeticamente fechada por sua Cortina de Bambu - e que nem eles, jornalistas franceses,

cujo governo vivia bajulando Mao e Chou, podiam lá entrar - quanto mais eu, que além de

sul-americano, possuía o agravante de ser brasileiro. Assim aconselhou-me que não

perdesse tempo e voltasse para o Brasil onde, na melhor das hipóteses, poderia ainda tentar

cobrar as despesas da viagem do maluco do Lara. Não desisti. Naquela mesma tarde entrei

na Embaixada da China, à avenue George V com minha application para Pequim. Um

chinês gordinho, vestido com um traje cinza, tipo Mao, me recebeu numa sala escura,

anotou minhas pretensões e endereço e me disse que estava bem, que eu esperasse.

- Onde?

- Onde quiser.

- Quanto tempo?

E ele, sem me olhar nos olhos, e muito lentamente:

- Três dias, três semanas, três meses ou três anos. . .

Ainda não desisti. No outro dia estava em Londres, também na Embaixada da

China, não me lembro do nome da rua, mas sei ir lá, porque fica entre a BBC e a Oxford

Street. Ali havia mais luz na sala e o (também) chinês que me atendeu, mais magro e mais

simpático do que o outro, mas vestindo idêntica roupa, perguntou se aceitava um chá,

enquanto me estendia um cigarro, de evidente origem chinesa. Depois disse que estava um

lovely day, isn't indeed, que Londres era uma cidade muito bonita, imaginava que Porto

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Alegre também deveria ser - e sempre desconversando com relação ao pedido que,

devidamente preenchido, desde o princípio, insistentemente, eu lhe estendia. Por fim, com

alguma repugnância consentiu em agarrá-lo; e continuou a falar sobre o clima da

Inglaterra, ah! como seria bom se um dia Brasil e China estabelecessem relações

diplomáticas e ele fosse trabalhar em Brasília. . .

- Mas e a application? Quando terei a resposta?

Aí ele repetiu o mesmo que o de Paris, só que em inglês e me fixando o olhar:

- Daqui a três dias, três semanas, três meses ou três anos. . .

Esfriei. Ele sorriu, disse que eu não desesperasse, que as coisas eram assim mesmo,

pediu que aguardasse só um momentinho, cruzou uma cortina através da qual em seguida

voltou, com um pequeno objeto na mão:

- Tome, leve, é o livro vermelho com os pensamentos de nosso grande presidente e

líder Mao-Tsé-Tung. Não deixe de o ler sempre, que ele só lhe trará felicidade.

- Mas e a application camarada? Quando. . .

- Já lhe disse: três. . .

Apertei-lhe a mão mole e suada e dei o fora. No hotel, meti o livro vermelho no

meio das cuecas sujas, com medo da Polícia no Rio - e no outro dia voltei para o Brasil, via

Varig, naturalmente.

Aqui, então, chegamos ao fim do primeiro capítulo de minha, por enquanto,

desventurosa novela.

Já no Segundo Capítulo, ao voltar do México, em maio de 1972, resolvi

interromper a viagem no Chile, para ver como iam as coisas com o camarada Allende.

Encontrei Santiago, outrora uma bela, limpa, rica e pacífica cidade, virada do avesso - tal

qual, aliás, vem acontecendo com Lisboa nos últimos tempos. Num bairro perdido nos

confins, localizei a embaixada da China. Mandei que o táxi ficasse esperando, bati na

porta, espiaram pelo olho mágico, levaram um tempão para me atender e, para encurtar o

episódio, a conversa foi exatamente a mesma de Paris e Londres.

- Mas companheiro, acontece que já cruzei os tais três dias, três semanas e três

meses que os camaradas mandaram. . .

E o chinês muito sério, pausado e em espanhol:

- Pero le hace falta aún esperar los tres años, amigo. . .

Aí, sim - desisti. Decididamente, não tinha condições para enfrentar a paciência

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

oriental. E Porto Alegre, outra vez.

Terceiro Capitulo. Estando eu inocentemente na Rádio Guaíba, recebo a visita de

Hans Müller, representante da Air France em Porto Alegre:

- Tenho uma surpresa para você!

Partindo tal frase do Müller, já me imaginei sem transição tomando meu kir na

gaiola envidraçada de um café do Boul' Mich’ fazendo hora para comer uns certos

escargots e um determinado cordeiro, que só naquele bistrozinho ao lado da Notre Dame

sabem preparar. . .

- Viagem a Paris à vista, Müller?

- Que nada, chê. Convite para visitar a China no vôo inaugural da Air France! . . .

Um estalo explodiu em minha cabeça e tudo se fez claro e ofuscante como um

meio-dia de verão em pleno sol: eu havia superado a última das provações chinesas. Os

três anos tinham passado. . .

Isso é o que eu pensava. O pior estava por acontecer.

Quarto Capítulo. Na embaixada da China, em Brasília, foram todos muito cordiais

e amistosos. O mesmo chá, o mesmo cigarro, só que desta feita dois eram meus

interlocutores, ambos falando um português quase perfeito. Entreguei-lhes alguns

exemplares do Correio do Povo, da Folha da Tarde e da Folha da Manhã, todos sorríamos,

afinal era maio, o dia em Brasília estava lindo. . .

Tomaram umas quantas notas a meu respeito, aceitaram o passaporte, pediram mais

fotos e pouco tempo depois o documento me era remetido para Porto Alegre, com o sofrido

visto. Com um pequeno detalhe apenas: eu não poderia embarcar no vôo inicial da Air

France, pois o grupo já estava preenchido, mas somente em fins de setembro, o que seria

melhor ainda, conforme me esclareceu o prestativo Müller, pois eu pegaria em Pequim as

comemorações do l º de outubro, data máxima chinesa - o fino em matéria de reportagem.

Disse duas ou três vezes obrigado, Müller, acompanhei-o até a porta do elevador e comecei

a me preparar para a aventura. Por descargo de consciência e para me atualizar na

geografia, olhei o mapa. Lá estava, até então impenetrável e misteriosa para mim, a China

Vermelha. Mas, bem ali ao seu lado, a não menos enigmática Rússia, aliás, União

Soviética, como dizem ser seu verdadeiro nome. E, no caminho entre Paris e Pequim -

Moscou.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Então, quem sabe - e por que não? . .

Na mesma hora telefonei para o Müller:

- Posso interromper o vôo em Moscou e ficar ali uns três-quatro dias?

- Não tem problema. Só que precisas o visto soviético.

- Bom, quanto a isso não vejo dificuldades. Os russos andam tão liberais. . .

- Ok. Então pede.

Pedi. E nesse momento tem início o

Quinto Capítulo.

Pelo malote da Caldas Júnior e com uma linda carta de recomendação de amigos

comuns, os diplomatas soviéticos em Brasília receberam meu passaporte. Isto foi a 5 de

setembro, me lembro bem, porque é o dia do aniversário da minha filha. Acontece - e é ali

que começa o drama - que o passaporte já estava carimbado com o visto da China e sua

data única e autorizada para cruzar a fronteira: 26 de setembro. Com vinte dias pela frente,

nunca imaginei que pudesse haver qualquer complicação; e comecei a me preparar para

uma viagem que me proporcionaria uma visão das duas mães do comunismo internacional.

Pura ingenuidade, santa boa fé. Os dias foram passando, e nada. Já estava na antevéspera

da data fatídica - e os russos, moita. Foi então que, assustado com a demora, telefonei para

o Aldo Magalhães, nosso representante em Brasília, para que ele informasse à embaixada

soviética que eu tinha desistido de visitar a Rússia e que, pelo primeiro malote, mandasse

de volta meu passaporte. No dia seguinte o telex da Caldas Júnior taquetaqueou o seguinte:

- Aqui Aldo. Quero falar com Flávio.

- OK, pode falar.

- Olha, a coisa está difícil. Depois que comuniquei a decisão de não visitares a

Rússia, o Valentim não me permitiu mais contato com ele. Não atende telefone e não me

recebeu em duas visitas que fiz à embaixada, onde inclusive deixei um bilhete pessoal para

ele. Hoje enviei mensagem pelo telex e continuo insistindo pelo telefone. Estou apreensivo

com isso, pois entendo que deveria mandar-te o passaporte hoje.

- Tenho que viajar sexta-feira. Se não, perco o avião. Que diabo! Eles não têm o

direito de reter o meu passaporte!

- Eu também acho. Penso que seria interessante tu chamares agora o telex e reforçar

meu pedido. Eu marquei, inclusive, quatro horas como limite para me colocarem o

passaporte à disposição, e estou vendo a coisa preta.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

- Ok. Vou passar o telex. Como é, afinal, todo o nome desse Valentim?

- É Valentim Aleshim. Olha, ele me disse que sexta-feira estaria aí em Porto

Alegre, mas ponderei-lhe que não poderíamos esperar até lá. E nunca mais consegui falar

com o homem.

- Grato, Aldo. Vou agir.

Agi. Em seguida, desci para o telex e liguei para Brasília:

- Atenção, Aldo. Acabei de falar com o senhor Valentim pelo telefone. Ele me

prometeu que vai devolver o passaporte. É bom que fiques de olho nisso, caso contrário é

capaz de haver extravio ou coisa que o valha, tu sabes como são esses caras, o peito deles,

tentarem fazer isso com um brasileiro; e no Brasil. Imagina só o que não praticam lá na

democracia deles. Vou ficar aguardando o resultado das tuas gestões aqui mesmo no telex.

Passam cinco minutos. Dez. Uma hora. Tudo mais longo, arrastado e agoniante do

que os «três dias, etc.» dos chineses. Mas, de repente, a máquina estala e começa a

escrever o - uff! - happy end desta edificante novela de paciência asiática, suspense,

emoção, persistência, ódio entre as grandes potências comunistas e, afinal, triunfo do

mocinho:

- Amigo Flávio, mais uma vitória da democracia! O Valentim recuou em sua

pérfida atitude e teu passaporte acaba de ser posto em nosso malote, seguindo hoje à noite

para Porto Alegre. Boa viagem! . . .

E foi assim que, apesar de toda a solerte obstaculização do social-comunismo revi

sionista da União Soviética, estou agora apertando os cintos e não fumando, enquanto o

Boeing da Companhia de Aviação Civil da China se prepara para aterrar no aeroporto

deserto de Shangai, nesta noite crivada de estrelas vermelhas de 26 de setembro de 1975. . .

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Shangai

No último degrau da escada do avião, bem naquele que fica junto ao solo, faço uma

operação de troca-de-passo e acabo pisando com o pé direito em território chinês. São sete

e meia da noite e um calor opressivo me agride, enquanto sigo para a Polícia e para a

Alfândega. Olho em todas as direções e, na pista do aeroporto, além do nosso, só vejo um

outro avião - um Trident de fabricação inglesa. Minha primeira impressão da China é de

que estou numa terra quente, muito pouco iluminada e num aeroporto interditado.

Entro no saguão do prédio, cujas características, do lado de fora, mal posso distinguir. A direita, por

detrás de um balcão alto, de quase dois metros, sobressaem as cabeças - apenas - de dois rapazes. De seus

trajes, só percebo os bonés verdes, com uma desproporcional estrela de plástico vermelho ao centro. Entrego-

lhes a declaração especificada de todo o dinheiro que levo, uma relação dos gravadores e máquina

fotográfica, número de fitas e filmes, e o passaporte. Este somente me seria devolvido em Kwelin quase duas

semanas mais tarde, já às vésperas de deixarmos a China. Na Alfândega o exame da bagagem é rápido, cortês

e sumários.

Ê nesse momento que somos apresentados a dois dos scorts que nos acompanhariam durante todo o

tempo: o senhor Li, que mais tarde concluimos ser uma espécie de comissário do povo, e o senhor Mi, este

falando um português quase perfeito só que com indisfarçável sotaque alemão. O senhor Li se manifestava

apenas em chinês mas irradiava bonomia, dentro dos seus setenta quilos, socados em metro e sessenta de

altura. Já o senhorr Mi era alto e esguio, e nas maneiras, na postura das mãos e no ar encabulado, com que

coçava os cabelos, quando se via embaraçado com alguma pergunta - dava a perfeita impressão de um

seminarista dos bons tempos.

Ê ele quem traduz as primeiras palavras - formuladas através de discurso solene e

secundadas por palmas dos viajantes - que o senhor Li nos desfere textualmente: «- Somos

representantes da Luching-She, que é a Agência Geral de Turismo na China e queremos

dar boas vindas aos amigos brasileiros. Entre os povos do Brasil e da China existe uma

amizade tradicional, sobretudo depois do estabelecimento das relações diplomáticas entre

nossos países, o que abriu uma nova página em nossa história. Os amigos atravessaram

oceanos e montanhas e percorreram uma longa distância para chegar à China e por isso nos

sentimos muito felizes e alegres com sua presença. Estamos convencidos de que a vossa

visita vai contribuir desta feita para a promoção da amizade entre o povo brasileiro e o

chinês. A cidade de Shangai que é a primeira que visitarão, se localiza na zona subtropical.

Em agosto faz calor e em janeiro frio. A temperatura média anual é de 15 graus. Shangai é

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o centro da indústria pesada chinesa, fica na confluência dos rios Huang-Pu e Su-Zhov e

tem 11 milhões de habitantes, numa área de 145 quilômetros quadrados. Em qualquer

momento, se tiverem alguma critica a nos fazer, que a formulem, pois nosso objetivo é vê-

los felizes».

Nossas malas já foram embarcadas no porta-bagagem de um ônibus cinza e dentro

dele, com o motorista a buzinar incessantemente, percorremos os vinte mal iluminados

quilômetros que separam o Aeroporto de Shangai do Grande Hotel, onde ficaremos

hospedados.

O calor aumenta à medida em que nos aproximamos da cidade. Ao cruzarmos os

primeiros subúrbios, ele se torna gelatinoso, úmido, gosmento. Diante de casas pobres e

cinzentas, gente pobre e cinzenta senta em cadeiras de vime, as mulheres com túnica e

calças compridas e os homens, em sua maioria, de short e camiseta de física.

Carroças transbordando de verdura e puxadas por magros cavalos desfilam à nossa

frente, o motorista do ônibus a buzinar cada vez mais freneticamente. Ciclistas, às

centenas, e logo aos milhares, apenas com muita relutância, cedem passagem ao carro, que

meia hora depois nos despeja no pátio interno e despersonificado do Hotel Shangai. Um

imponente prédio de tijolos vitorianos e aparentes, construído pelos ingleses no início do

século e que foi um dos mais famosos da China, servindo de motivos a românticas histórias

de Vicki Baun.

Shangai, desde meados do século passado, quando submetida à força de

canhonaços pelo imperialismo britânico, foi a grande cidade portuária e cosmopolita da

China e ainda hoje guarda traços desse seu status.

Já no dia seguinte, à luz do sol, vamos concluir que ela possui muito mais

características européias do que propriamente chinesa. Mas por enquanto estamos no velho

hotel, os quartos são distribuídos no saguão, nós subimos primeiro, as malas vão depois.

Não nos dão chaves. Estas ficam em mãos de vigias, um em cada andar. O meu é o oitavo,

apartamento 820, com as janelas da direita para o rio Huang-Pu e as da esquerda para a

Chuan Lu, uma das mais movimentadas ruas da cidade. É um quarto enorme e obsoleto, o

pé direito com cerca de quatro metros de altura e com uma área de pelo mínimo trinta

metros quadrados, o mau gosto megalômano inglês até hoje pre-Hente na China. .. As

janelas são protegidas por telas e vidro e este, mesmo fechado, não consegue deter a

infernal barulheira que vem lá de baixo, seja a da buzina dos ônibus (pois automóveis até

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então não vira nenhum), seja a dos alto-falantes dos barcos que sobem e descem o rio num

desfilar intermitente de procissão. Um descomunal radiador de calefação revela que deve

fazer frio no inverno, mas em compensação, contra o calor só posso contar com um

pequeno ventilador de fabricação chinesa, sobre a mesinha de cabeceira, entre as duas

camas de solteiro postadas no quarto. Além destas, o parco mobiliário se constitui de uma

cômoda, tão fora de moda quanto os britânicos que a utilizaram; e uma secretaria. Sobre

ela, dois vidros de tinta e - o que faz com que me transporte em transição para os distantes

tempos do ginásio do Rosário «<oh! guri relaxado, vives com os dedos sempre sujos de

tinta» - reclamava sempre o irmão Faustino) - duas canetas com pena de aço. . .

No lado oposto às janelas da esquerda, um quarto de banho com pia, banheiro e

chuveiro. Não há bidê. O vaso é também de louça branca, encardida como todo o conjunto.

Sua caixa d'água é aparente - e está vazando. Com meus conhecimentos de hidráulica,

levanto-lhe a tampa, dou uma torção na bóia e faço o instrumento silenciar. Chego, mesmo,

a anotar o fato em meu diário. Mal imaginava que deveria repetir essa cena em todos os

quartos dos vários hotéis em que me hospedei na China. Porque se há algo de positivo que

já posso escrever sem temor de ser desmentido a respeito da terra de Mao-Tse-Tung é

precisamente este: Na China, todas as patentes de todos os hotéis - vazam. Dito o que, e

ducha devidamente tomada, mas assim mesmo transpirando muito, pois o calor não

diminui, entrego a chave ao zelador do andar e desço para ver se encontro comida.

São nove e meia da noite e no saguão o senhor Li e o senhorr Mi começam a

transmitir as suas instruções. Enquanto Li fala seu chinês e Mi ainda não o traduz, olho em

volta e vislumbro um que outro resquício da presença inglêsa, inclusive uma sala de bilhar,

com um enorme ventilador de pá sobre a mesa, cercada em seus dois lados por sofás com

porta-copos, onde os britânicos, vestindo seus smokings, charuto numa mão a cálice de

uísque na outra (ou quem sabe gin-tônica?) assistiam às carambolas de seus patrícios,

solenes, tranqüilos e despreocupados já que, à entrada do hotel, a placa deixava bem claro

que (e isso todos que escreveram sobre a China já o disseram, mas não vejo razão por que

não repeti-lo, pois serve para dar aos leitores uma maior compreensão do que ali

aconteceu) - . .. porque no ambiente «é proibida a entra_ da de cães e chineses.»

Entrementes, Mi traduz:

- Hoje jantarr e descanso. Amanhã cedo, e como há muitos médicos entre os

amigos, visita ao hospital pela manhã, a uma comuna popular pela tarde e à Ópera de

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Pequim à noite.

Pela amostra, e se os dias subseqüentes forem mantidos nesse ritmo, tenho a

impressão de que acabarei desistindo pelo caminho, à falta de resistência física, ou então

tomando um verdadeiro cursilho de China. Como se verá mais adiante, temo ter sido a

segunda hipótese a que aconteceu. . .

O jantar é simples, mas chinês e abundante: arroz sem sal em tigelas, naturalmente,

camarão ensopado, uma espécie suspeita de nabo cozido, galinha com pimentão e porco

com abacaxi. A cozinha de Shangai não é das mais reputadas na China, cuja tradição de

gourmandise se concentra em Pequim e em Cantão, conforme o guloso leitor terá a

oportunidade de degustar mais tarde, ao longo dessas andanças que recém iniciamos. A

ceia termina com seu prato de encerramento que, na China, sempre é constituído por uma

sopa de massa ou legumes.

Sobremesas, sentiam muito mas «estavam em falta», café não se aprecia na China,

em compensação nos servem chá verde, o primeiro de uma série intermitente que só se

encerraria ao final da viagem. Aí então, mesmo os que fumam se levantam apressadamente

para conhecer a Loja da Amizade, que fica logo ali, cruzando a ponte e o Parque e onde se

vendem artigos exclusivamente para os amigos visitantes estrangeiros, como nós.

São onze da noite e estamos voltando da Loja da Amizade, um prédio de três

andares, sem elevador, tipo grande magazine, só que em termos modestos e chineses. Ali

há o essencial em matéria de vestuário, algo de sapatos e sandálias e muito de

quinquilharias, todas de mau gosto. As antigüidades dos Ming ficam para mais tarde e são

vendidas em casas especializadas, tudo sempre controlado pelo estado. É na Loja da

Amizade que trocamos nossos primeiros dólares, na base de um dólar = 1,90 yuans. O

yuan, por sua vez, é dividido em 100 jiaos. Um jovem operário em início de carreira ganha

35 yuans mensais, que é o menor dos oito níveis de salário, dentro dos quais se enquadram

todos os chineses. Importante salientar que o que mais ganha não pode ultrapassar em oito

e no máximo dez vezes o nível do menor salário. Não há, assim, diferenças flagrantes entre

ricos (que não existem) e os pobres (que não são miseráveis).

A revolução de Mao realizou, de fato, uma igualdade que, em parte alguma do

mundo, o socialismo conseguiu. Só que o nivelamento é muito por baixo. Em

compensação, como se verá mais adiante, quando nos embrenharmos nos caminhos da

economia chinesa, não há desemprego, ninguém passa fome e mesmo quem percebe o

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

salário mínimo de 35 yuans (que equivale a mais ou menos Cr$ 150,00 pelo câmbio atual)

pode levar uma vida modesta, mas decente, comendo três vezes por dia, comprando dois

traje mao por ano e indo ao seu cineminha ou à sua operazinha. Nesses, bem como através

de todo e qualquer meio de comunicação por ele tentacularmente controlado, o governo lhe

aplica sua doutrinação política, subliminar ou escancaradamente.

Embolso os 190 yuans que me deram pelos cem dólares que troquei e compro por

16 um mao azul acompanhado do respectivo boné, duas camisas e dois pares de meia de

algodão. Alpargatas ou tênis (que eu precisava, pois só tinha levado roupas e calçados de

inverno) é que não consigo. Os chineses, inclusive os homens e mesmo depois da

revolução cultural, continuam com pés incrivelmente pequenos, e números acima de 40 são

fabricados quase que exclusivamente para os amigos visitantes estrangeiros, cujo último

grupo, constituído de hordas búlgaras, havia levado justamente o meu número.

Entre o Parque da Loja da Amizade e o Hotel há uma ponte de ferro sobre o

Huang-Pu. São quase onze da noite, mas apesar do chinês, de uma maneira geral dormir

cedo, há ainda muito movimento, principalmente de ciclistas. Sobre o balaustre da ponte, à

esquerda de quem vai para o hotel, vislumbro, em meio ao escurinho, três casais jovens,

mais agarrados um ao outro do que em suas bicicletas, postas ao lado. Mi e Li desviam

abruptamente os olhos da terrível cena. É que o sexo é uma das coisas mais proibidas na

China. Ele deve ser refreado pela mulher até os 25 anos e, pelo homem até os 30, sob pena

de um ou outro ser considerado revisionista e, como tal, sofrer as respectivas sanções.

Todos os autores que eu li, todos os estrangeiros que visitaram ou que moram na China,

com os quais conversei são unânimes a esse respeito. O chinês, tanto o homem como a

mulher, aparenta guardar a castidade até o casamento; e só se casa com licença das

autoridades competentes - no caso o Comitê Revolucionário - depois de ter cruzado a idade

mínima limite. Até lá, deve manter-se assexuado. Isso é motivado pelo verdadeiro pavor do

governo ante a explosão demográfica, pavor tão flagrante que o obriga a uma (também

aparente) política de avestruz, a ponto de ter realizado o último recenseamento do país em

1953 e de não saber (pelo menos oficialmente) quantos habitantes tem a China. Sinólogos

criteriosos, contudo, estimam que a população da nação chinesa, neste quase final de 1975

anda por volta dos 860-940 milhões de habitantes e que, apesar de todos os empecilhos

interpostos entre os sexos ditos opostos, o índice de crescimento demo gráfico se mantém

na assustadora ordem dos 2% anuais. A pílula anticoncepcional é fabricada e distribuída

maciça e gratuitamente. Rádio, TV, jornais impressos ou murais, alto-falantes e Comitês

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Revolucionários pregam violentamente o controle da natalidade (que eufemisticamente

denominam planejamento familiar). Mas assim mesmo inúmeros casos de rebeldia se

verificam não só nas cidades como, principalmente, nos campos.

- O camponês é o principal problema - me confiou ao longo da viagem um dos

amigos chineses. E explicou:

- Ê que eles, por uma tradição instilada pelo maldito Confúcio, não param de

procriar enquanto não lhes vem um filho varão. E há casos de encontrarmos nas comunas

famílias com oito, dez e até mesmo doze filhos.

O aborto é livre, estimulado e praticado gratuitamente e com anestesia acupuntural.

Apesar de tudo isso (e esta é observação pessoal minha), nunca vi tanta criança em

parte alguma do mundo como na China - seja nas cidade, seja nos campos. O governo

insiste e muitas vezes apela para sanções mais ou menos violentas. Nas universidades,

quando se manifesta algum caso de amor (ou mesmo tentativa de namoro) entre dois

jovens, eles são denunciados ao Comitê Revolucionário (porque ali como em toda a China

reina o regime da vigilância recíproca - ou do dedo-duro, para falarmos bem claro) e os

responsáveis, seja por mãozinhas-dadas, seja por olhares furtivos, são levados ao Conselho

de Disciplina, diante do qual, se não se retratarem e prometerem nunca mais olhar um para

o outro (e muito menos se tocarem) até completar (ele) 30 anos e (ela) 25 - serão punidos

com a expulsão e imediata transferência para longínquas e separadas províncias. . .

Sob o ponto de vista sexual, a China vive sob um verdadeiro regime de terror, iniciado com a

reeducação das prostitutas e dos homossexuais, que ou se converteram ou foram eliminados fisicamente; e

que prossegue ainda hoje, com interferências, até na vida do casal já legitimamente constituído dentro dos

mais rígidos pensamentos de Mao-Tsé-Tung. Este, para ter um terceiro filho deve pedir licença ao Comitê

Revolucionário, o qual normalmente nega sua autorização. Se o casal desobedecer a ordem, o aborto é

sugerido e se não for realizado e a criança nascer, a mulher ou o homem são automaticamente separados, um

ou outro transferido para um local distante e inacessível, somente lhes sendo concedida autorização para se

visitarem de ano em ano, assim mesmo com a específica e determinante ordem de não procriar.

No sexo, como em muitas coisas mais, a China contraria a natureza humana. Mas,

apesar de todo o terror repressivo, casaizinhos se tocam e se amam nessa noite cálida de

Shangai, sobre a ponte de ferro do Huang-Pu, à luz do luar. . .

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Acupuntura

De repente, me dou conta e começo rir sozinho: há quanto tempo eu não vivia essa

situação - começar a engatinhar numa terra estranha. . . São cinco da madrugada de sábado,

27 de setembro e cansei de me revirar na cama molhada de suor. Mesmo com o ventilador

virado em minha direção, sinto muito calor. Há ainda o toe-toe-toe incessante dos barcos

subindo e descendo o Huang-Pu, os seus condutores berrando pelos alto-falantes portáteis

presumíveis ordens de «afastem-se do caminho». Meto-me debaixo da ducha fria,

cuidando para não escorregar dentro da banheira suja e encardida, esfrego-me

violentamente com a toalha também suspeita, visto minhas blue-jeans e uma camisa de

algodão que comprei ontem por dois dólares na Loja da Amizade, em cuja frente está

escrito despudoradamente Shangai, em vermelho. Sento numa das duas poltronas do

quarto, ao lado de uma mesinha, onde abro a térmica azul decorada com motivos florais

horrorosos e despejo a água quente num cilindro de louça, dentro do qual botei antes duas

colheres de chá de jasmim que à véspera o camareiro ali havia deixado numa caixinha de

lata. Enquanto as folhas de chá vão decantando, começa a clarear. E em seguida tudo é

inundado por uma das constante infernais que deveria me acompanhar por quase toda a

China: o buzinar dos ônibus. Chego até um dos janelões do quarto e, o sol já despontando,

vislumbro uma cena inacreditável. Por toda a parte, à minha frente, desde a calçada

defronte ao hotel até o parque do outro lado do rio, centenas, senão milhares de criaturas -

homens, mulheres e crianças - postam-se nas mais variadas posições, praticando bizarros

movimentos com as mãos, os pés e os troncos. Ê a calistenia chinesa, a ginástica praticada

diariamente - e durante um período que vai de meia a uma hora - pela imensa maioria da

população, seguindo, naturalmente, os pensamentos de Mao-Tsé-Tung. O curioso é que

ninguém os comanda, cada um improvisa ou cria seus próprios gestos - o que não deixa de

ser confortador entre um povo altamente disciplinado e certo, que não deve fazer outra

coisa senão cumprir a rigidez física e moral programada por seus chefes. Fico mais de hora

a assistir ao fenômeno, até telefonarem que o café está na mesa. E quando pego o elevador

para o refeitório do primeiro andar, não chego ainda a concluir se estou vivendo em

Esparta ou num disciplinado Colégio Jesuíta dos inquisitoriais tempos. . .

O café é tipo ocidental, composto do propriamente dito ou de chá, acompanhado de

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

torradas, geléias e ovos de pato fritos com fatias de «bacon». Sorvo-o sem muita gana, pois

já havia tomado três xícaras de chá de jasmim, mas, nesse começo de dia, não deixo de

sentir-me feliz, contente, e de certo modo integrado no país que tão gentilmente me recebe.

Ê que poucos minutos antes, quando me preparava para descer, uma mosca (evidentemente

revisionista) entrou pela janela, fez várias piruetas e pousou em meu nariz. Não tive a

menor hesitação nem a mínima dúvida me assaltou, em minha consciente e convicta

determinação - e com violenta bofetada esfacelei o repugnante inseto contra a própria

epiderme. Ora, eu sabia que, de acordo com a severa instrução do presidente Mao, cada

chinês tinha a obrigação de matar pelo menos dez deles por dia. Assim eu, mesmo como

amigo estrangeiro começava bem o dia, com aquela morte modesta, mas sincera

homenagem à Revolução Cultural.

Cheguei mesmo a revelar o episódio a Mi, que com amplo (e amarelo) sorriso

aprovou minha colaboração e, até mesmo, a comunicou ao comissário Li, o qual fez-me (e

Mi pressurosamente traduziu) um pequeno, porém belo, discurso de agradecimento. Dito o

que, pegamos o ônibus e - ousados navegantes em meio a um mar de ciclistas rumamos

para o Hospital Hu-Chan, anexo n.º 1 do Instituto de Medicina de Shangai. Depois do chá

inicial, na sala de visitas e das explicações que sempre muito gentilmente nos ministraram

genericamente - «em Shangai há 430 hospitais, com 50.000 leitos, atendidos por 13.000

médicos» - passaram a particularizar sua situação. O Hu-Chan é uma das casas de saúde

mais sofisticadas da cidade, especializada em neurologia, cirurgia em geral,

endocrinologia, dermatologia, além de praticar a medicina tradicional chinesa, seja pura

seja em combinação com a ocidental. 200 médicos e 700 funcionários ali trabalham, mas

não em caráter permanente, já que, devido a outro pensamento do presidente Mao, o centro

de gravidade da medicina deve situar-se no campo. Assim sendo, o Hospital mantém

permanentemente cerca de 25% de seu efetivo fora dos centros urbanos, atendendo os

camponeses e, inclusive, cultivando ervas que a medicina tradicional chinesa emprega com

tanta abundância e, ao que parece, com muito bons resultados. Como há cinco médicos

brasileiros em nosso grupo, as perguntas descem a minúcias, mas quando se tornam

incômodas, geralmente são respondidas por um «ah! isso nós não sabemos». Não sabiam,

pois, qual a doença que mais afeta a população, ignoravam o índice de enfermidades

mentais, desconheciam o grau de anemia da população e as endemias mais presentes no

país.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Mas a respeito de acupuntura, sabiam quase tudo, menos, é claro - e isso ninguém

sabe - como funcionava, qual seu embasamento científico. Mas que ela agia com eficiência

pragmática, isso logo em seguida pudemos ver, ao alto de um salão de cujo piso

sobressaiam, a uma distância de dez metros e separadas por uma porta aberta, duas cúpulas

de vidro. Lá em baixo, duas operações se desenrolavam. Uma de extirpação de tumor na

tireóide de uma moça de 25 anos de idade e, na outra sala, a de extração de outro tumor, só

que no cérebro de um homem gordo, cuja fisionomia não vimos, percebemos apenas sua

cabeça raspada, britada por brocas e serras, até o tampão ósseo cerebral ser retirado. A

menina tinha duas agulhas cravadas nas mãos e era tudo. Estava descontraída, olhava para

cima, para nós; e sorria. O homem parecia um porco em matadouro, branco e flácido - e tal

impressão se acentuou ainda mais, quando, retirada parte de sua caixa craniana, uma

sangüeira medonha cobriu suas feições. Não pude (e muito menos os médicos brasileiros),

perceber se ele estava dormindo ou acordado. Alguns, os mais céticos, disseram que

forçosamente estava anestesiado à ocidental. Mas, a não ser a pequena caixinha que

transmite uma corrente de eletricidade às agulhas acupunturais, nenhuma engenhoca

anestésica estava presente nas imediações. Não me lembro bem com quantas agulhas o

operado-cerebral ora insensibilizado, parece-me que com cinco. Ficamos ali por volta mais

de hora e não pudemos assistir o resultado das operações. Mas, segundo nos afirmaram os

médicos chineses (e muitos autores ocidentais confirmam), o êxito da anestesia

acupuntural é pelo menos igual - e em muitos casos superior - ao obtido pela anestesia

clássica praticada no Ocidente. E há, sobretudo, a grande vantagem da eliminação

completa dos acidentes operatórios e pós-operatórios provocados pela ingestão de drogas

insensibilizantes. A acupuntura, que os chineses já praticavam há mais de 4.000 anos, foi

desenvolvida depois que os comunistas tomaram conta do poder na China e tem sido um

dos fatores que mais contribuíram para o desenvolvimento da medicina num país pobre

que, graças a ela, pode mandar seus médicos realizar operações nas regiões mais

desprovidas de recursos, usando apenas um punhado de agulhas pouco diferentes das que

os ocidentais empregam para aplicar injeção. Como esse assunto sempre me fascinou e

como já tinha lido muita coisa a respeito, crivei os médicos chineses com o mesmo número

de perguntas que lhes formularam seus colegas brasileiros. De suas respostas, os leitores

poderão, certamente, tirar suas próprias e- quem sabe? - definitivas conclusões.

Dizem que nos confins da história, um guerreiro que sofria de dores atrozes nas

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

costas, levou um flechaço na perna e ficou com a ponta da arma ali cravada sem poder

retirá-la. Quando voltou para o acampamento, a perna doía, sim, mas a dor lombar que há

tantos anos o atormentava, havia desaparecido por completo. Especulação vai, especulação

vem, século chega, século passa (nunca nos esquecendo que estamos na China, onde o

tempo não conta) e os curandeiros da época acabaram por concluir que uma picada, numa

determinada parte do corpo podia fazer eliminar a dor em outra região. E assim, sempre

numa evolução muito lenta e paciente, foram substituindo as agulhas de sílex pelas de

osso, mais tarde pelas de bronze, ferro - até chegarmos ao estágio atual das de aço. As

quais, mais recentemente ainda, passaram a ter a cabeça cobreada. Ê que as agulhas de

acupuntura para anestesiar, devem ser constantemente viradas, durante todo o tempo da

operação. Para evitar tal trabalheira, os modernos cientistas chineses decidiram aplicar em

cada agulha uma diminuta corrente elétrica contínua, fornecida por quatro pilhas comuns,

dessas que se usam em rádios transistores, passando a eletricidade a fazer o mesmo efeito

da anterior manipulação. Assim, com um custo praticamente zero, a medicina chinesa

anestesia pacientes das mais melindrosas operações, inclusive as de coração extra

corpóreas. Para um país pobre e doente, fácil é depreender-se o benefício que tal

proporcionou. Desde a Revolução de 1949 para cá (e essa estatística, sim, eles sabem e

revelam), mais de um milhão de operações por acupuntura foram realizadas com sucesso

superior a 90%. Quase todas as partes do corpo humano podem ser insensibilizadas, com

exceção de algumas zonas no ventre profundo. Assim mesmo todas as intervenções

ginecológicas são realizadas com acupuntura, sem que a paciente sinta qualquer espécie de

dor. A acupuntura (do latim acus = agulha; punctura = picada) - que como quase toda a

medicina tradicional foi semi-esquecida desde que os ocidentais começaram a dominar a

China - foi revivida por Mao-Tsé-Tung e seus companheiros, durante a guerra que

moveram a Chiang Kai-Shek, por razões principalmente objetivas e pragmáticas.

Escondendo-se nas montanhas, sem recursos, sem medicamentos e sem anestésicos, e com

centenas e às vezes milhares de soldados feridos, Mao vislumbrou na acupuntura e nas

ervas o único remédio para os males físicos de seus guerreiros.

E a ciência (ou arte? ou mistério? ou bruxaria?) da acupuntura, juntamente com o

também ressuscitado emprego das ervas medicinais para a cura de doenças e de feridas,

desempenhou um papel muito mais importante do que se possa imaginar para a vitória

militar do comunismo na China.

Atualmente (e sempre por ordem do governo) a acupuntura é uma das pesquisas

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

médicas prioritárias na China. Só que até agora, ninguém sabe como funciona. Mas

funciona.

Por enquanto (e sabe lá Deus até quando) há apenas teorias sobre a maneira como

as agulhas inibem a dor no corpo humano. Dessas, a em maior voga é de que o homem

(como de resto todo o universo) é regido por dois princípios, um passivo e outro ativo. O

ativo é o Yang, que representa o dia, a luz, o verão, o calor, o seco, o exterior, o homem e o

trabalho. O outro, o passivo, é o Yin, que traduz a noite, a escuridão, o inverno, o frio, a

umidade, o interior, a mulher e o descanso. O rompimento do equilíbrio entre o Yang e o

Yin, no caso específico do corpo humano, é que provoca as doenças. Essas, sempre

segundo os filósofos acupunturistas chineses, podem ser combatidas (como a medicina

ocidental o faz), com drogas; mas aí os médicos apenas estarão destruindo

momentaneamente um hóspede indesejável (no caso um vírus, um micróbio ou um bacilo),

ao passo que a porta de entrada para tais inimigos - com o rompimento entre nossos

princípios ativos e passivos - continua aberta e qualquer um deles,- mais cedo ou mais

tarde, por ali poderá entrar. .. Ora, a acupuntura restabelece (eles não sabem como) o tão

desejado equilíbrio, fazendo com que novamente o Yang e o Yin se reconciliem e o ser

humano se livre de seus males. . .

- Isso não está parecendo um pouco demais conto da Carochinha, Mi?

Mi não sabe traduzir a Carochinha, mas transmite ao médico- o significado da

pergunta. Saímos agora da sala das cúpulas sob as quais as operações prosseguem e

estamos tomando chá (de jasmim), fumando cigarros chineses conversando com três

médicos, mais dois membros do Comitê Revolucionário do Hospital, tudo supervisionado

pelo delegado do Comitê do Partido Comunista.

Os médicos respondem que, incrementado como foi pelo governo, o estudo da

acupuntura progrediu muito, mas sempre no terreno empírico. Atualmente já foram

detectados, catalogados e são manipulados 361 pontos nevrálgicos, cada um

insensibilizando uma região do organismo. Em casos de emergência (como o é o da

preparação dos médicos de pés-descalços - que por sinal, juntamente com a medicina

tradicional chinesa, merecerão um capítulo à parte nessas histórias) pode-se formar um

acupunturista em até cem dias, em cujo período ele chega a conhecer os pontos

elementares. Como regra geral, o estudo e a preparação de um acupunturista competente

pode estender-se de um a dez anos. As primeiras lições são de anatomia-neurológica em

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bonecos, onde os pontos são assinalados em preto e vermelho, dependendo de sua

importância. Depois, nas experiências práticas, o manequim é coberto de cera e o estudante

deve aplicar as agulhas exatamente nos locais que lhe forem sendo indicados. A perícia dos

acupunturistas é diabólica e dificilmente erram a pontaria. Uma vez espetadas as agulhas,

quinze minutos mais tarde, a área dolorida (ou a ser insensibilizada) está completamente

isolada. A prova disso eu fui ter mais tarde quando, no Hospital da cidade de Chang-Sha,

juntamente com um médico brasileiro fui crivado de agulhas, as quais, se bem que

doessem em sua aplicação, eliminaram por completo não só as dores que me afligiam (ah!

quase todas!) bem como uma insônia que me perseguia desde que desembarquei na China.

- Mas isso não se trata de sugestão, doutor? - quer saber um dos Santos Tomés

brasileiros. Ou, quem sabe, de hipnose?

A pergunta é feita em francês que o chinês entende e responde sem hesitar:

- Não acredito. É verdade que o paciente é preparado psicologicamente antes da

operação, ficando convicto de que todo o receio de dor do qual ele possa ser tomado (e que

no fundo não passa de mero sentimento burguês) não o deve perturbar. Que ele deve

confiar nos pensamentos do nosso grande presidente Mao-Tsé-Tung e que não sentirá

absolutamente nada.

- Eu não te disse que era coisa de chinês; e de chinês comunista? - me sussurra um

médico do grupo, do qual já começo a aprender o nome e a ciência.

- Olha, não sei não. Pelo que eu estou informado, eles operam criancinhas com

meses de idade e até mesmo animais - e ambos pelo que me consta (e até prova em

contrário) ainda não estão influenciados pelo livrinho vermelho do grande líder. . .

O médico brasileiro não se conforma:

- Doutor, a partir de que idade um ser humano pode ser sensibilizado pela

acupuntura? Há, na China, casos de realizarem operações com agulhas em animais sem

que esses sintam dor?

- Em princípio, temos operado crianças com apenas três meses sem nenhuma

manifestação dolorosa por parte delas. E em laboratórios, cães e gatos são acupunturados e

depois até mesmo dissecados sem que demonstrem qualquer sensação.

O chá termina, a conversa também.

À saída, o médico carioca pede a Mi que o leve a uma farmácia e ali compra por

menos de 30 dólares, um equipamento completo de acupuntura, inclusive a caixa elétrica e

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

dez jogos com os nove tipos de agulha empregados na anestesia chinesa. Eu, mais modesto

e menos médico, compro apenas um boneco com os 361 pontos, mais um jogo de nove

agulhas.

Total, nunca vi feitiçaria sem feiticeiro - nem feiticeiro sem aprendiz. . .

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Ó

pera de Pequim

Durante os quinze dias em que visitei a China, não tive um único período de

descanso nem de intimidade comigo mesmo - ou um dia livre para compras, como as

agências de turismo fazem constar em seus tentadores, mas nem sempre realistas,

prospectos de viagem. De manhãzinha cedo até à noite o bate-bate era incessante e

ininterrupto - e a ordem de nosso programa, determinada com antecedência, foi

rigorosamente cumprida. Assim, sem percebermos, fomos sendo sub-repticiamente

minados pela mesma espécie de lavagem cerebral que dia e noite é transmitida a

novecentos milhões de chineses, por todos os meios de comunicação existentes e que, sem

exceção, são manipulados pelo governo. Os veículos empregados para nos ministrar esse

verdadeiro cursilho de China eram constituídos por nosso guias, primordialmente, e em

poções menos maciças, pelos livretos, catálogos e revistas que nos forneciam. Havia,

também, uma certa dose de áudio-visual, esta felizmente de curta duração, como foi o caso

da Ópera de Pequim, a que assistimos na noite imediata à nossa chegada no principal

Teatro de Shangai. Nenhum de nosso grupo se surpreendeu, portanto, quando à certa altura

da viagem passamos a nos referir a Mao-Tsé-Tung como «o presidente Mao» (alguns, mais

sensíveis chegaram a dizer «o nosso grande presidente Mao») e a Chou-en-Lai como «o

camarada Chou», ou então «o glorioso Primeiro Ministro Chou». . .

Passamos a abominar os soviéticos como «membros da camarilha revisionista

chefiada pelo abjecto Brejnev»; Kruchev se tornou sinônimo de «traidor abominável da

causa das massas socialistas», o «social imperialismo russo» nos pareceu muito mais

solerte e perigoso do que o imperialismo americano, este afinal em melancólico recuo no

mundo inteiro, desde que foi aplastado pelo «heróico povo do Vietnã do Norte, nosso

amigo e nosso irmão».

Ao fim da primeira semana de viagem, muitos achavam até agradável o zurrar dos

alto-falantes que subiam aos nossos quartos, outros acreditavam cômodo, espartano e

edificante não ter nenhuma bebida gelada ou ar condicionado e dormir imersos em nuvens

de mosquito. Mas vi a coisa ficar feia mesmo e que estava na hora de acordar quando,

depois de uma visita a uma fábrica, e sabedor que os chefes de serviço pediam que seus

salários fossem rebaixados e se igualassem aos dos subalternos «para apressarmos o

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

socialismo e diminuirmos a diferença entre as classes» - um bem sucedido corretor de

imóveis no Rio de Janeiro, tido até então como o mais reacionário dentre nós, disse que

estava certo, que era aquilo mesmo e que, quando chegássemos ao Brasil, deveríamos

proceder da mesma forma.

- Mas qual é a tua Michel? estás ficando louco? - atirei-lhe com veemência e cheio

de medo que sua argumentação alucinada chegasse aos ouvidos do meu patrão, lá na

longínqua Porto Alegre. . .

- Louco nada, seu. Vê só quem é mais feliz: eles ou nós? Todos certinhos,

vestidinhos iguais, comendo a mesma coisa, lendo o mesmo livrinho vermelhinho,

ganhando parelho, dormindo e acordando à hora exata, sem ter que gastar com psicanalista

(que aqui não há), sem se preocupar em pagar imposto de renda (que aqui não existe), sem

se importar com o aumento da gasolina (que todos andam de bicicleta), sem temer

resfriado (que aqui não tem gelo), sem ter ressaca (que não se encontra uísque nem de

contrabando), sem ter que fazer dieta (que a comida é toda contadinha), sem. .. A esta

altura e já cercado por um considerável grupo de patrícios, felizmente ofendidos e

despertados de sua própria lavagem cerebral pela súbita catarse do companheiro, Michel é

salvo seguramente de um linchamento (ou tentativa de) por Mi, que se embrenhou em

nosso meio para dizer-nos, com seu inconfundível sotaque sino-germânico, que senhorres

está na horra de irr para a óperra de Pequim.

A Ópera de Pequim, bem como todas as representações teatrais e televisionadas,

faz parte da bateria de instrumentos de que o governo se vale para lavar o cérebro do povo.

Todas as exibições, todos os temas, todas as canções são de fundo político. De um lado, os

bandidos, representados pelos imperialistas, que ora tiram o pêlo dos japoneses, ora dos

americanos e ultimamente muito mais dos russos; e do outro os mocinhos, tendo à frente

um herói legendário do exército vermelho, no caso o camarada-soldado Ta-Chun, que

acaba salvando os aldeões ou a mocinha, perseguidos e espoliados, matando os inimigos

das massas ou, na melhor ou mais caridosa das hipóteses, aplicando-lhes um tratamento de

reeducação anti-revisionista.

Entramos no recinto com o espetáculo já começado, justamente numa dessas partes

críticas. Nosso ônibus tinha atrasado, tão grande a multidão que o cercara momentos antes

para ver os amigos estrangeiros. A custo abrimos alas e entramos numa platéia formada

por mais de duas mil pessoas, em sua quase totalidade chineses. As únicas exceções

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

éramos nós, um grupo de búlgaros e outro que me pareceu de escandinavos. Aquela noite,

como reforço para ajudar a Mi e Li, tinha chegado de Pequim uma nova intérprete: Lu,

moça baixinha e gordinha que falava português quase tão bem como nós (e, para ser

franco, melhor do que muitos do grupo) e que sentada em nosso meio ia traduzindo as

cantorias.

Lá no palco, a mocinha, vítima das perseguições imperialista chorava, cantava e

contava em tons agudos a sua história:

_ Sou filha de um caçador que fugiu diante da perseguição dos bandidos

imperialistas e espoliadores (choro). Papai jogou-se num abismo e mamãe e eu nos

escondemos nessas matas. Desde então fingi de muda e só ando com roupas de rapaz.

(choro e gestos). Espero que agora com tua presença e a do Exército Libertador, oh! Ta-

Chun, o sol ilumine de novo nossas montanhas, os bandidos revisionistas (e imperialistas)

sejam eliminados e eu possa me vestir de moça outra vez e voar para o alto, afim de ver o

extermínio dos inimigos das massas. (A platéia explode em aplausos. Nós também).

Ta-Chun responde em cantos e gestos heróicos, o fuzil na mão:

(Novos e histéricos aplausos no princípio, meio e fim)

- Oh! pequena e desamparada Tchau-Pao! Cada uma de tuas palavras me despertou

grande indignação. Neste mundo os oprimidos têm um registro com dívidas e com saldo

(positivo). Devemos nos vingar! A dívida de sangue deve ser eliminada com sangue!

Vamos matar esses abutres e o povo se libertará, levantará a cabeça e o sol aparecerá por

sobre essa montanha encoberta. (hurras chineses entre os assistentes).

Daqui em diante sigamos o salvador, que é o nosso grande presidente Mao, seu

Livro Vermelho e o invencível Partido Comunista da China, esmagando os vermes sócio-

imperial-capitalistas e mudando a fisionomia desses lugares. Então os bonitos dias serão

mais bonitos ainda.

Dito o que, Ta-Chun e seus soldados saem em perseguição da camarilha

revisionista inimiga que debanda desordenadamente, deixando mortos e feridos a estertorar

pelo palco inteiro. Não deu para ver se Ta-Chun chegou a casar com Tchau-Pao porque o

entusiasmo foi tão grande na platéia, toda ela de pé, batendo palmas e vibrando gritos de

aplauso - que perdi a visão do palco e dos acontecimentos. Mas tudo me leva a crer que

sim, que se casaram e que foram felizes para sempre, mesmo porque Tchau-Pao aparentava

muito mais do que vinte e cinco anos e Ta-Chun tinha ares de quarentão, o que, de acordo

com o pensamento do grande presidente Mao autorizaria o enlace. Desde que, é claro,

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

prometessem não procriar mais do que dois filhos.

Aquela noite assistimos a um pot-pourri dos principais trechos das sete óperas,

balés e representações teatrais exibidas na China. Sim, porque todo o repertório de balé,

ópera e teatro chinês se resume a este número: sete. Assim, a China que, antes da

Revolução Cultural possuía um repertório autorizado de 50.000 títulos de obras de teatro,

balé e ópera, viu esse número reduzido para 35 em 1964 e posteriormente para sete.

Apenas sete. Esses dados são confirmados pelo parlamentar e escritor francês Alain

Peyrefitte em seu livro Quand la Chine S'Éveillera, aos quais acrescenta que «em Shangai

não são oferecidos ao Público mais do que cinco peças, interpretadas ou filmadas, nos

últimos três anos. A assistência aos espetáculos é tida como ato político, portanto como

uma obrigação. A quase totalidade dos filmes anteriores à Revolução Cultural foi proibida.

A criação pessoal foi abolida, pois denotava a busca de renome. As únicas sete peças de

teatro, balé ou ópera admitidas na China são obras de equipe, sob a direção da camarada

Chian Ching, mulher do presidente Mao.

O povo reeducou os líderes do trabalho literário e artístico e reorganizou os quadros

de escritores e de artistas. O número total desses, antes da Revolução Cultural, se elevava a

duzentos mil.

De onde se depreende que, de fato, se tratou de uma revolução cultural. Sem dúvida

nenhuma.

O que acontece na Ópera, se repete na televisão (que opera geralmente apenas três

horas por dia, das 18,30 às 21,30h), com exceção dos domingos, quando há um horário

infantil matutino. Os mesmos temas, as mesmas histórias, as mesmas mensagens. Há casos

de certos filmes ou tapes que são repetidos, durante mais de ano, semanalmente e no

mesmo horário - e que, por incrível que pareça, continuam atraindo os telespectadores que

se concentram diante dos 250.000 aparelhos de TV, que existem em todo o território

chinês. A quase totalidade desses televisores pertence a organizações, cooperativas ou

grupos de famílias que moram no mesmo edifício e que os postam em sala comum.

Noticiário não há, o que existe é apenas um que outro documentário sobre os fatos do

governo. TV a cores não vi nenhuma, a não ser na Feira Permanente de Shangai, onde

alguns protótipos nos foram exibidos.

Comecei a falar sobre os temas das Óperas e quase me perco no meio do assunto,

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

mas podem crer que há fundadas razões para tal. É que depois da pequena e desamparada

Tchau-Pao ter sido salva pelo heróico e intimorato Ta-Chau, representaram ainda a

Engenhosa Conquista da Montanha do Tigre, Nas Comunas, Graças ao Pensamento de

Mao a Primavera Chega Mais Cedo, a. . . Bem, para ser absolutamente veraz, devo

confessar que a essa altura adormeci profundamente (numa imperdoável e típica atitude de

pequeno burguês-revisionista) e somente fui acordado pelo barulho obsceno de meus

próprios roncos, conforme está documentado em gravação que simultaneamente eu ia

fazendo, mas que de jeito nenhum botarei no ar para não ofender os amigos chineses. Os

quais, como se viu, têm grande consideração por sua Ópera e um enorme respeito e

obediência pelas mensagens que ela, tão artística e engenhosamente pode, deve e sabe

transmitir.

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Crítica e Autocrítica

Pela primeira vez, nessa madrugada de domingo, 28 de setembro, começo a sentir

que, de fato, estou na China - e ignoro por quê. Shangai, tirando sua população (mas o que

seria de uma cidade sem seus habitantes?) não tem muitas características asiáticas. No

máximo poderia ser uma cópia amarela de muito mau gosto de uma Londres, como a

quiseram e em grande parte a construíram os britânicos em fins do século passado e no

começo deste.

Acordei, como na véspera, às cinco, quando o dia já se ia desenhando em meio a

cúmulos cor-de-cinza. Tomei meu chá, assisti à ginástica do povo lá em baixo nas

calçadas, jardins e no próprio leito da rua semi deserta de ônibus e fiquei percorrendo o

dial de meu radiozinho de pilha, na vã esperança de captar algo em inglês. A maioria dos

broadcastings emitia palavras, das quais volta e meia - e única e exclusivamente - eu

pescava apenas um que outro som semelhante a Mao-Tsé-Tung. As emissões de música

eram raras, e ou orquestradas ou cantadas dentro do monótono ritmo chinês. Numa rádio

captei algo parecido com um som de ginástica, comandada ao piano, e foi tudo. Perto das

seis o sol venceu as nuvens e apareceu, e fiquei fazendo hora para o café que abria somente

às sete. Foi aí que me senti não em Shangai, mas na China; e não na China como outro país

a conhecer, mas como uma concepção de vida e de filosofia completamente estranhas a

tudo o que eu poderia imaginar por mais que tivesse lido e ouvido falar a respeito. E passei

a imaginar que emoções não me aguardariam ainda nos quatorze dias restantes quando, aí

então, mergulharia no miolo e nas profundezas do país. Hoje, por exemplo, devemos seguir

para Pequim, logo depois de visitarmos a Feira Industrial da Cidade, da qual iremos direto

para o aeroporto. E em Pequim, tão logo desembarcarmos já nos aguarda um novo e, pelo

jeito, mais intensivo programa. Às 6h30min ponho a mala no corredor, defronte à porta do

quarto, como me haviam mandado, e, diante da chatice da programação das rádios, não

tenho outro recurso do que me quedar sentado a ler o Livrinho Vermelho, numa edificante

e chinesa atitude de fazer o tempo passar proveitosa e respeitosamente. . .

Num megatério construído pelos russos que o denominaram (antes da briga)

Palácio da Amizade Sino-Soviético e que (depois da briga) foi rebatizado como Feira

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Industrial Permanente de Shangai, os chineses exibem o que de melhor produzem o

artesanato e as indústrias leves e pesadas instaladas na região. Na verdade, e pelo que vi-

mos durante quase três horas de caminhada por seus pavilhões, há ali quase tudo que a

moderna técnica produz, desde aparelhos eletrônicos altamente miniaturizados, até

gigantescas turbinas hidráulicas ou térmicas. Em salas que se sucedem, num crescendo de

valorização do material apresentado, vimos trabalhos incrivelmente meticulosos em

enormes peças de marfim e de jade, brinquedos que não perdem para os japoneses e

bonecas não menos belas e perfeitas do que as espanholas. Há uma seção dedicada à

medicina com especial ênfase à acupuntura (e ali) projetam uma operação extracorpórea de

coração, com anestesia feita exclusivamente pelas agulhas); outra à aparelhagem cirúrgica

e odontológica, outra ainda ao equipamento pesado de rádio e TV (muito semelhante -

senão cópia - dos modelos RCA), além de exposição de tratores, caminhões e dos dois

modelos de automóvel fabricados no país: o Shangai, calcado no Cadillac, modelo dos

anos 50 e o Bandeira Vermelha, híbrido do nosso Opala com o Dodge.

Pela manhã a Feira permanece aberta só para os estrangeiros, cabendo a parte da

tarde ao povo. O recinto é limpo, arejado e muito claro. Estátuas em corpo inteiro de Mao

(algumas com mais de três metros de altura e quase todas brancas) nos acenam por toda a

parte, com seu braço direito levantado, inclusive na sala final, dedicada como sempre ao

chá e aos cigarros, onde em companhia do Mi e do comissário Li me sento agora para a

indefectível sessão de crítica e auto crítica. Espiando Mao (e com certeza nos espionando),

retratos de Stalin e Lenin se alçam ao alto das paredes.

Como fiz durante todas as visitas que realizei na China, levei o gravador comigo. E

registrei não só a maioria das explicações de nossos guias, durante a caminhada pela

Exposição, como também a conversa que, naquele momento, tive com Mi e com Li. Duas

semanas mais tarde, já às vésperas de deixar a China, quando voltávamos os três de uma

visita à principal comuna de Cantão, Li disse para Mi e este me traduziu o pensamento do

chefe: o de que eu não deveria utilizar a conversa que tivéramos ao final da nossa recorrida

pela Feira de Shangai. - Pode dizer a ele que não tem perigo, Mi. Só a usarei para

apontamentos. Precisa e literariamente como passo a fazer agora:

- Aceita chá? - pergunta Mi.

- Obrigado. Aceito. Ê de jasmim?

- É. E cigarros?

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Em todos os recintos de conversa há, sobre as mesas, latinhas redondas contendo

cigarros de fabricação chinesa, seja de fumo claro, seja de tabaco negro. Não são maus,

apenas um pouco doces e meio enjoativos, semelhantes aos ingleses.

- Não. Obrigado, Mi. Prefiro os meus, são americanos. Li, pressuroso acende o meu

e depois o seu.

- Olhe - digo eu, iniciando a crítica e autocrítica - sabe que eu acho que vocês

fumam demais? . . .

Sorrisos de ambos (depois da tradução). Ainda eu:

- Quantos cigarros fumam por dia? Quarenta? Sessenta?

- Nem tanto. Mas bastante.

- O presidente Mao fuma?

Mi hesita, consulta Li e depois responde bem baixinho:

- Sim.

- Onde vocês cultivam o tabaco?

- Em quase todas as províncias.

- Quanto custa o maço?

- Mais ou menos 50 centavos. (Ê caro, se levarmos em conta o baixo nível salarial

da China, cujo mínimo não ultrapassa 35 yuans). Há inúmeras marcas de cigarro chinês,

todas elas produzidas e comercializadas pelo Estado. Mas voltemos à conversa:

- A Revolução Cultural foi em 1966, não foi?

- Foi.

- Quantos anos durou?

Mi traduz para Li, ambos riem:

- Ainda continua. . .

- Mas aquela história dos guardas-vermelhos ainda não acabou?

- Não. Até hoje existe. Só que os guardas-vermelhos continuam a exercer suas

atividades nas escolas.

- Ainda há revisionistas na China?

- Sim. Mas agora nós realizamos campanhas de crítica para prevenir o

revisionismo, pois como o presidente Mao falou, temos que lutar não uma vez, não

algumas vezes, mas dezenas de vezes para manter a revolução proletária na China. No

passado conseguimos algum progresso, mas na verdade estamos ainda na via do

desenvolvimento. Conquistamos o princípio de autonomia e de independência, mas ao

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

mesmo tempo precisamos aproveitar as técnicas avançadas do mundo.

- Ainda existem classes na sociedade?

- Existem classes.

- Que espécie de classes?

- Existe ainda a burguesia proletária.

E eu, em sincero tom de surpresa:

- Ainda existe? . . .

- Burgueses ainda existem. Vivem.

- Burgueses do passado, com certeza. . .

- Mas também nascem novos burgueses.

Aí o que é que vocês fazem?

- Fortalecemos a ditadura do proletariado, efetuando a sua reeducação. A luta entre

o proletariado e a burguesia vai durar longo tempo, estendendo-se por todo o período do

socialismo.

Já estamos no terceiro cilindro de chá (e como deveria eu denominar algo que não é

xícara nem caneca?) e minha inquisição segue firme, Mi só respondendo depois de

consultar Li.

- Como encaram vocês a União Soviética?

- Hoje em dia a União Soviética já é um país social-imperialista. Antigamente era

socialista sob a direção de Lenin. Quando o elemento revi sionista e traidor Kruchev subiu

ao palco do poder, ele a transformou em uma nação imperialista e revisionista.

- E Brejnev também?

- Tem razão.

- Quem é o mais perigoso para a China: o imperialismo dos Estados Unidos ou o

imperialismo da Rússia?

- Nós encaramos o problema não apenas da posição da China. Qualquer país

imperialista sempre oprime e explora outros países do terceiro mundo. Por isso, uma

nação, seja social-imperialista ou imperialista, é sempre perigosa para os outros povos.

Encaro o comissário Li e digo-lhe em português:

- Muito inteligente a sua resposta.

Ele ri, dando-me a perfeita impressão de que compreendeu o que eu disse. Tempos

depois, ouvindo várias vezes a gravação, passei a desconfiar de que Li (o qual, segundo fui

informado mais tarde, tinha já acompanhado cinco visitas de grupos estrangeiros à China)

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

era bem capaz de entender ou até mesmo falar algo de português e, por conveniência,

fazia-se de sonso. Sabe-se lá, enfim, o que passa pela cabeça de um chinês. . . Depois da

risada ele fala com Mi e este prossegue:

- Sem dúvida, na etapa atual o social imperialismo da União Soviética estende mais

as mãos para todo o mundo, com mais ambição de ocupar e de explorar os outros povos.

Por isso, nos dias de hoje é mais perigoso do que o norte-americano.

- Por que vocês permitem a existência de colônias estrangeiras como Hong Kong e

Macau?

- Esse problema foi produzido no passado, quando o povo não tinha direitos e era

dominado pelos senhores feudais que assinaram tratados desiguais. Tanto Hong Kong

como Macau constituem territórios inalienáveis da China. Quando e de que maneira vão

ser libertados isso depende da situação. . .

O chá termina e, momentaneamente, o assunto também. Os amigos brasileiros

aproximam-se de nós e Li diz que está na hora de seguirmos para o aeroporto.

Em hora e meia e num Boeing da CACC trocamos o calor pegajoso de Shangai

pelo friozinho seco, temperado e reconfortante de Pequim. Fazia muito calor quando

embarcamos e as aeromoças (todas de tranças, blusas brancas, com colarinho fechado e

calças azuis de boca larga) nos entregaram um objeto preto, retilíneo e não identificado. Os

mais inteligentes descobriram, depois de meticuloso exame, que não era nada de comer,

mas sim uma ventarola, para fazer às vezes de ar condicionado que o avião não possuía. . .

Campos quadriculados, áreas cobertas de verde até o limite do horizonte, água por

toda a parte, depois são as nuvens a encobrir o caminho e então já o aeroporto de Pequim.

Esse sim moderno e movimentado, com indicadores de chegada e partida e enormes fotos e

estátuas de Mao, além de suas citações em vermelho sobre fundo branco, de um lado em

chinês, do outro em inglês.

Embarcamos num ônibus, as malas vão mais tarde em outro. Nosso objetivo é

largar a bagagem de mão no Hotel e seguir imediatamente para o Estádio Operário, onde

deveremos assistir a um desfile e o final do campeonato de futebol (!) da China. Por uma

alameda asfaltada, com árvores de sentinela ao longo de todos os seus trinta quilômetros,

rumamos para o centro de Pequim, que desde o primeiro momento nos parece ser

simpática e acolhedora. Ampla, ela de fato é. Somente sua praça principal - a Tien An Men

- comportaria em seu interior e juntas, a Praça Vermelha de Moscou e a Concorde de Paris.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Suas avenidas sofrem (ou são beneficiadas) pelo mesmo gigantismo. São todas concretadas

e, à diferença de Shangai, os ciclistas não são os únicos donos das ruas, estas também

compartilhadas por automóveis.

O movimento é enorme - e todo em sentido contrário ao que seguimos. Ê gente que

vai para o Estádio; e já vi que vamos chegar atrasados, o que de fato acaba por acontecer.

Quando ali entramos uma hora mais tarde, o desfile das bandas, que é o que nos

interessava, já tinha terminado. Estavam em campo duas equipes de futebol, uma de blusa

amarela, como a da seleção do Brasil, a outra vermelha, como a do meu Internacional. A

primeira representando Cantão e o colorado, Pequim

Mas o espetáculo valeu sobretudo pelo colorido da platéia, em grande parte tomada

por militares e, também, pela visão do estádio - tão grande quanto o do Internacional -

completamente tomado por uma gente de fisionomia tão estranha, mas naquele momento,

tão parecida com a nossa, em seu entusiasmo e fanatismo.

E naquele fim de tarde de Pequim cheguei a me convencer de que na terra, bem no

fundo mesmo, todos os homens do mundo, se quisessem, poderiam ser amigos e - quem

sabe? - até mesmo ser irmãos. Pelo menos em seu interesse pelo futebol. . .

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A nobre arte da tortura

Depois do calor amazônico de Shangai, é bom caminhar, agora que são quase dez

horas da noite e o frio é ameno e amigo, pela avenida Fusin Men Wai, em direção à praça

Tien An Men, ciclópico centro geográfico de Pequim e do mundo chinês. O movimento é

discreto e silencioso. Mesmo os ônibus são mais discretos e mais silenciosos que os de

Shangai, isto é, não são tomados por aquela psicose da buzina, que desde a madrugada até

à noite atordoa a cidade, que deixáramos no princípio da tarde. Pequim, pelo menos em seu

centro, é ampla, desafogada e limpa. Ciclistas deslizam, ora isolados, ora em grupos

compactos, ora aos casais. Todos vestem a mesma roupa à Mao, diferente apenas na cor: o

azul, em Pequim, é o mais presente do que o cinza. Não somos olhados com a mesma

curiosidade de que éramos alvo em Shangai. Pequim é muito mais cosmopolita e ali o

estrangeiro deixou de ser o bicho raro e escasso no mercado. Há dezenas de embaixadas

dos mais desencontrados países do mundo e uma média mensal de mil turistas visita a

capital. Não vemos bares nem bêbados. Nunca, nesses quinze dias de China, vimos

bêbados. Mais tarde, descobrimos um que outro barzinho, o povo bebendo discretamente

sua cerveja morna - e foi só. Um par de tendas abertas, vendem frutas e sementes tostadas.

A avenida está profusamente iluminada, os gigantescos retratos de Mao, Stalin, Lenin, e do

Dr. Sun Yat-Sen, proclamador da República (em 1912) e Pai da Pátria (até segunda

ordem), cercados de lampadazinhas multicores, como aquelas que antigamente iluminavam

Igrejas do Brasil por ocasião das festas de seus santos.

Às dez horas, certamente desligadas por um comando único, todas as luzes se

apagam, menos as das luminárias da avenida. Os ciclistas aceleram o pedal, os transeuntes

escasseiam - e voltamos à proteção e ao abrigo do Hotel das Nacionalidades.

Administrativamente a China se divide em 21 províncias, cinco regiões autônomas

e dois Distritos Federais: Pequim e Shangai.

A raça predominante é a han (ou seja, os chineses), cujo nome é oriundo da dinastia

do mesmo nome que existiu do século II Antes de Cristo ao século II de nossa era. Os han

falam o idioma oficial do país, que é o mandarim, e se constituem aproximadamente 95%

da população. Apesar dessa esmagadora predominância, a China é um país de minorias

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

nacionais, cujo Instituto - um prédio cinza claro, localizado no meio de um parque todo

arborizado, começamos agora a visitar. Depois das clássicas apresentações, a clássica sala

de chá. Este, ao contrário do que nos serviam em Shangai não é de jasmim, mas de folhas e

coloração verde. Ê nessa ocasião que aprendo minha segunda palavra em chinês (ou han):

tchá) ou seja, o nosso chá. A primeira foi ontem, ainda no aeroporto, quando descobri não

sem surpresa que obrigado é chí-chi, com acento agudíssimo no i, para evitar qualquer

mal-entendido.

O Sr. Rô e a Senhora Rô, representando o Comitê Revolucionário e o Comitê do

Partido, nos recebem muito amáveis, cercados por um grupo de gente moça fantasiada de

trajes regionais. Uns representam a Mongólia, outros o Tibet, a Coréia, o Miao - num total

de 54 minorias, que somam em toda China cerca de 50 milhões de habitantes. Eles se

espalham por aproximadamente 60% do território chinês e, diferentemente dos governos

anteriores, que sistematicamente os perseguiam, os minoritários hoje são estimulados a

falar sua própria língua, preservar seus costumes e usar os trajes típicos de cada uma de

suas regiões. O Instituto das Nacionalidades procura ser uma demonstração viva e prática

dessas intenções. Estudam ali 1.500 alunos e alunas representando todas as minorias, desde

a de maior população, que é a T'chouang, que conta dez milhões de almas até a Razakh,

com menos de mil integrantes. A primeira se localiza na região autônoma de Guang Xi,

nas imediações do Vietnã e a última na Manchúria. Ao contrário do que estabelece para a

maioria do povo chinês, que por bem ou por mal é obrigado a limitar a natalidade, a

política de Mao com relação às minorias é oposta: elas são estimuladas a ter mais filhos,

afim de não correr o perigo de extinção. Tal política parece que já funcionou, tanto que a

nacionalidade de Razakh, que em 1949 estava em vias de extinção, praticamente dobrou

sua população desde que os comunistas tomaram o poder. Por esse detalhe bem podemos

deduzir quão assustador seria ou será o número de chineses, caso não sejam mantidas

enérgicas medidas governamentais de planejamento familiar.

Escoltados pelos camaradas Rô-Rô e cercados por um grupo colorido de rapazes e

moças trajando as mais bizarras vestes, começamos a caminhar pelas dependências do

Instituto. Ali, inteiramente subvencionados pelo governo, os jovens das minorias

(escolhidos e designados por suas coletividades no caso pelo Comitê Revolucionário e pelo

do Partido) cumprem um curso universitário no qual especializam-se no idioma han, em

música, belas artes ou balé, em história e formação de lideranças. Em todo o momento e

por toda a parte os professores do Instituto lhes acenam com a tenebrosa lembrança do

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

passado pré-revolucionário, quando as minorias eram massacradas pelos senhores feudais e

pelos imperialistas estrangeiros. Há um Museu no Instituto, o qual passamos a visitar, que

pouco fica a dever (e talvez até mesmo supere) o pior dos filmes de horror. Ali estão,

cuidadosamente preservados dentro de vitrinas, crânios humanos de minorias perseguidas,

que seus opressores faziam com que elas (escravizadas) usassem como tigela, juntamente

com flautas feitas de ossos e tambores de pele humana. Há a múmia enegrecida de um

escravo, localizada no Tibet, juntamente com milhares de outras e a explicação para sua

preservação é simples: os Lamas empregavam os corpos (muitas vezes vivos) da minoria

tibetiana, para servir de alicerce a seus palácios. . . Tal sistema, segundo nos traduzem

nossos intérpretes, foi mantido pelo Dalai Lama até bem recentemente - até 1959. Há mais

ainda: a fotografia de integrantes de minorias com o nariz, as orelhas e os dedos cortados, a

cena sendo impassivelmente assistida por um circunspecto cidadão inglês, ao lado dos

mandarins detentores do poder - e há, sobretudo, uma certa tortura (os detalhes e as

imagens reproduzidas), que a todos apavorou. A vítima do castigo era amarrada diante de

um caldeirão com óleo fervente. Aí então comprimiam-lhe a parte superior da cabeça com

um pesadíssimo capacete de pedra, cuja pressão fazia com que os olhos do infeliz

saltassem fora das órbitas. Os carrascos recolhiam numa espécie de colherão de sopa os

dois globos oculares, mergulhavam-nos imediatamente no azeite em ebulição e com uma

perícia digna do melhor acupunturista, tornavam a botar os olhos fritos em suas respectivas

cavidades, para deter a hemorragia que havia começado. . .

Assim sendo não é de se estranhar que nós, no Ocidente, aliemos o termo tortura

aos seus mais habilidosos e tradicionais cultores: os chineses. Chegaram eles a tal requinte

que a transformaram em nobre e cultivada arte. Segundo Jacques Lavier *, professor do

Instituto de Acupuntura de Formosa, «em todos os tempos, a tortura foi considerada uma

necessidade na China. As inquietudes sociais contínuas obrigaram os reis a praticá-la para

manter uma paz relativa em seus estados. Os carrascos se transformavam em verdadeiros

artistas e transmitiam seus segredos de pai para filho, professor a aluno. A arte atingiu a tal

estágio de perfeição, que a vítima a ser supliciada, quando se apresentava diante de seu

carrasco, fazia questão de agradecer com antecedência (e com toda a etiqueta e cerimonial

da época), pelos processos artísticos a que iria ser submetida, e cujo justo valor ela iria

certamente apreciar, se bem que fosse indigna de tamanha honra.

O carrasco protestava: não, muito pelo contrário, ele é que estava envergonhado de

(*) JACQUES LAVIER – Lácunpucture chinoise – Veyser, paris, 1974

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possuir tão escassa ciência a colocar à disposição de tão distinto cliente) ao qual pedia

perdão por suas possíveis insuficiência. Naturalmente, ele se esforçaria ao máximo para

propiciar ao seu paciente os sofrimentos os mais atrozes e o mais demoradamente possível,

mas a ilustre condenado ficaria por certo decepcionado por seus miseráveis talentos.

Cumpridas essas formalidades, passava-se aos atos - e o infeliz era minuciosamente

esfolada, eventrado e estripado: literalmente, era dissecado vivo, ele sempre agradecendo -

aos berros lancinantes - e o carrasco sempre se desculpando, com voz bondosa e humilde.

Médicos assistiam à cerimônia, seus bons cuidados eram requisitados, não para a

diminuição das dores do suplicado, mas para que esse permanecesse vivo; e bem

consciente. Não era raro ver-se um infeliz ser submetida à tortura durante várias dias

seguidos antes de conseguir deixar este baixo mundo, as carrascos se superando em seus

refinamentos. . . »

Depois da almoço (que quase ninguém tocou, por óbvias razões), fomos ao

Zoológico ver o símbolo animal vivo da China, o urso panda, espécie em extinção, que os

chineses tratam com um conforto que não é tributado nem ao mais importante amigo

estrangeiro. Em enormes gaiolas de vidro, dotadas de ar condicionado (que não vi em

nenhuma parte do país, a não ser em residências de diplomatas estrangeiros, e em alguns

hospitais e museus) os pandas, que são de pêlo branco com patas pretas, parecidos com

botas e uma espécie de máscara, também negra, cercando seus olhos, dormitavam sua

sesta. Eram indiferentes as centenas de visitantes, especialmente soldados e crianças que,

de tão entusiasmados ante sua visão, chegavam a aplaudi-los.

Volto para o hotel. É segunda-feira, 29 de setembro, são 4 h da tarde. Depois de

complicados cálculos, chego à conclusão de são 5 h da madrugada no Brasil: está, pois, na

hora de confirmar o circuita que havia pedido ontem à noite para realizar o primeiro

broadcasting para a Rádio Guaíba.

Será a primeira vez que uma emissora do Brasil falará da China - e não nego que

me sinto assustado diante da responsabilidade.

Toca para a telefonista (que não entende nem sequer inglês) e depois de quase uma

hora de agonia, acaba ligando para o Mi.

- Que deseja senhorr Gomes?

- Ora, Mi: falar para o Brasil, como já te pedi anteontem. .

- Sem dúvida.

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Os minutos, logo os quartos-de-hora e então as horas vão passando, eu

dependurado na linha, suando frio.

- Como é Mi?

- Sem dúvida.

Eram seis da tarde (já às 7 da manhã no Brasil) - e ainda nada.

- Pô Mi: não agüento mais essa agonia. Vai dar para falar ou não?

- Sem dúvida, confie nos pensamentos do presidente Mao.

E desliga de novo.

E foi assim, tal qual fazem certos fanáticas americanos e tal qual fazia o

carismático Sinhô Badaró da Jorge Amado, os quais para inspirar qualquer decisão (ou

para dela saberem antecipadamente o resultado), abriam ao acaso uma página da Bíblia -

foi assim, que também ao acaso abri o maldito Livrinho Vermelho. Caí no pensamento

final do Capítulo XXI:

«Na China antiga, havia uma fábula intitulada O Velho Bobo que removia

montanhas. Conta que, faz muito tempo, vivia no norte da país um ancião conhecido como

o Velho Bobo das montanhas da norte. Sua casa dava para o sul, e à sua frente, obstruindo

a vista, se elevavam grandes montanhas. O Velho Bobo resolveu levar seus filhos para lá e

remover a montanha com enxadas. Outro ancião, conhecido como Velho Sábio, ao vê-los

trabalhando, riu e disse:

- Que loucura! Ê absolutamente impossível que vocês, tão pouca gente, consigam

remover montanhas tão grandes! . . .

O Velho Bobo respondeu:.

- Depois que eu morrer, meus filhos continuarão. Quando eles morrerem, meus

netos continuarão; e depois seus filhos, os filhos de seus filhos e assim indefinidamente.

Embora muito altas, essas montanhas não crescem; e cada pedaço que delas tiramos as

torna mais pequenas. Por que, pois, não poderemos removê-las?

Tendo refutado a idéia errônea do Velho Sábio, o Velho Bobo continuou

escavando, dia após dia, sem desistir de sua intenção. Deus, comovido, enviou a terra dois

anjos, que botaram as montanhas nas costas e as removeram. Hoje, sobre o povo chinês,

pesam também duas grandes montanhas, uma que se chama imperialismo e a outra

feudalismo. Devemos eliminá-las, e preservar em nossa decisão e trabalhar sem cessar:

também comoveremos a Deus. Nosso Deus não é outro senão as massas populares e o

Partido Comunista da China. Se eles se levantam e cavam junto conosco - por que não

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

poderemos eliminar essas montanhas?»

Fecho o Livrinho Vermelho, intrigado. No mesmo momento toca o telefone:

- Alô Pequim? Alô Pequim?

E de novo, mais alto e mais forte:

- Alô Pequim? Alô Pequim? Fala rapaz! Estamos ouvindo!...

Bendito Livro Vermelho! Sábio e heróico Velho Bobo! Grande Presidente Mao!

Nobre e forte e positivo seu pensamento, que removeu montanhas de obstáculos e oceanos

de empecilhos entre meu quarto de hotel em Pequim e nossos transmissores de Porto

Alegre.

No outro lado do mundo, a Rádio Guaíba me ouvia com som local.

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Revisionismo

Pequim, embandeirada e enretratada, aguarda a grande data nacional, que

transcorre amanhã, 19 de outubro de 1975, assinalando o 269 aniversário da vitória

comunista e instalação da República Popular da China. Delegações de todas as províncias e

dos mais longínquos pontos do mundo - especialmente do terceiro mundo - lotam as ruas,

os parques, as praças e os museus, com o colorido de seus trajes típicos e a alegria, muitas

vezes espalhafatosa (como é o caso das delegações da Itália e do México), de seus gestos e

das suas discussões. Para decepção de muitos, não consta no programa nenhum desfile

armado, seja de máquinas, seja de homens. Apesar disso, Pequim está literalmente tomada

por soldados do Exército Vermelho, todos de aspecto saudável, todos vestindo o mesmo

uniforme verde, com duas pequenas faixas encarnadas na gola. Raríssimo o que usa

sapatos. Nenhum com botas. Em sua imensa e quase inteira totalidade, calçam tênis verdes

com bicos pretos. Nenhum usa galões ou qualquer coisa que possa distinguir o soldado do

oficial e este do do general. São quase todos jovens e não tem aparência bélica.

- Não te iludas com a aparência - me diz o dr. René. Foi por acreditar na mesma

aparência abúlica dos vietnamitas, que os americanos perderam a guerra na Indochina.

A despeito da presença militar maciça, não há qualquer vestígio de opressão

militar, como sentem aqueles que já estiveram na Rússia. Ali, segundo conclusão de todos

os meus amigos, o ambiente é quase irrespirável, não só devido à grosseria dos militar,

como à sua prepotência. Na China não percebi nada disso - muito pelo contrário. O

soldado parece brotar diretamente da massa popular; e, como ela, é amável, gentil e

atencioso para com o amigo estrangeiro.

Em todo o caso, lá como cá, aparências há. . .

Já disse em outro capítulo, que minha primeira (porém sincera) homenagem à

Revolução Cultural chinesa aconteceu em Shangai, quando ali trucidei uma mosca que

escapara dos pensamentos de Mao-Tsé-Tung. Pois, em Pequim aconteceu coisa

semelhante, só que em dimensões (e colaboração) mais avantajadas. Como devêssemos

permanecer quatro dias na capital, resolvi despejar o conteúdo de minha mala e mandar

lavar a roupa suja. Que por sinal pouco adiantou, pois voltou da lavanderia quase nas

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mesmas condições. Ao efetuar tal operação - oh! surpresa eis que emerge, do fundo da

valise, furiosa e tonta barata, de coloração visivelmente russa, que imediatamente ruma

para o banheiro. No meio do caminho, um certeiro e valente sapataço gaúcho cortou a sua

execrável carreira, aplastando-a com um estalo. Orgulhoso da façanha acomodei o cadáver

dentro de um maço de cigarros vazio e, pleno de júbilo, telefonei para Mi:

- Vem cá que tenho uma surpresa para ti, camarada.

Asiático e comunista convicto, mas nem por isso menos curioso do que qualquer

vivente burguês, minutos depois Mi batia delicadamente à porta:

- O senhorr Gomes me disse que tinha uma surrpreeza. . .

- Tenho sim, olha: acabei com um elemento revisionista soviético no Hotel.

Mi olhou surpreso a barata, que em sua rigidez cadavérica dava ares do traidor do

Brejnev, e sentenciou:

- São atitudes anti-social-imperialistas assim que agradam ao presidente Mao. E,

com uma mesura, e de barata em punho, agarrada pelo rabo (certamente para mostrá-la a

seus companheiros na sessão diária de auto crítica), meu guia retirou-se feliz, grato e com

os olhos iluminados.

Apresentam-me Jaime à hora do almoço. Logo sinto uma enorme simpatia por ele.

Jaime Martins é um dos seis integrantes da colônia brasileira em Pequim, que talvez seja a

única de toda China. Nossa Embaixada naturalmente à parte. Jornalista da Ultima Hora de

São Paulo, ele foi designado, em 1962, para cobrir a visita que uma delegação de

jornalistas chineses fazia ao Brasil. Estávamos nos áureos tempos da quase-implantação do

quase-comunismo em nosso país, o ambiente era de lua-de-mel com a Rússia, a China e até

mesmo Cuba. Daí que, ao final da visita, Jaime foi convidado pela delegação para trabalhar

na Rádio Pequim. A proposta era tentadora, não só em termos ideológicos, como materiais

e aventurescos. Mesmo sendo noivo em Taubaté, aceitou e se instalou como locutor do

programa para o Brasil da poderosa emissora da capital chinesa, onde trabalhou até

princípios de março de 1964. Aí, como a situação não podia estar melhor no Brasil, voltou

para casar-se. Uma semana depois de ter desembarcado em Taubaté, estourou a Revolução

(a nossa) de 1964. Resultado: no dia seguinte Jaime era preso por inimizade pessoal do

delegado - e preso ficou durante seis meses.

- Me trataram muito bem, nada de torturas, como os soviéticos revisionistas dizem

que se pratica no Brasil assegurou. Libertado voltou para a China, desta feita acompanhado

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

por Angelina, sua noiva, com quem se casou em Pequim. Daí em diante ambos ali ficaram

trabalhando, ele como locutor, ela como professora de português.

Quando estava para ser mãe, Angelina voltou para Taubaté, onde teve uma menina,

com a qual voltou novamente para a China. Moraram durante muito tempo num hotel

destinado especialmente aos estrangeiros que trabalham em Pequim e hoje vivem num

pequeno apartamento (enorme para os padrões normais chineses), localizado a dois passos

da avenida principal.

- Minha segunda filha nasceu aqui - conta ele. Quis registrá-la brasileira, mas como

não havia relações diplomáticas, viajei para a Suíça, onde em Berna fui ao nosso

Consulado. Lá então apreenderam o meu passaporte. E o único país que me acolheu de

volta foi a China. . .

Ele fala manso, pausado, sem emoções. Quase como um chinês. Veste roupa Mao,

prefere seus cigarros chineses «estou acostumado com eles» aos que lhe ofereço e. . .

- E como é a vida de vocês aqui, Jaime?

- Olha: a gente se levanta às seis, faz ginástica, as meninas a tradicional calistenia

chinesa, eu e a Angelina o ioga. Depois tomamos café, nós dois o ocidental, as gurias o

chinês (sopa, macarrão, verduras, bolachas etc.) e então vamos cultivar nossa hortinha.

Plantamos milho-pipoca e girassol.

- Girassol?

- É que as meninas adoram a sua semente torradinha. E o milho-pipoca é útil a

todos: além de o comermos, aproveito a palha para fazer meu cigarrinho, com o fumo que

de vez em quando recebo de São Paulo. . .

- E depois da horta, o que fazem?

- Ah! não é só coisas para comer que plantamos. Cultivamos flores e até mesmo

rosas. .. Bem, depois Angelina e eu vamos para a Rádio e as gurias para o Colégio, onde

elas têm nome chinês e já são guardinhas-vermelhas. Almoçamos em casa, com a comida

que na véspera encomendamos - dois pratos: ou carne ou peixe e verduras e voltamos para

o trabalho e as garotas para a escola. Pelas seis-sete da tarde (que é noite fechada no

inverno) já estamos de novo no apartamento.

- Falas chinês?

- Não, não consegui aprender. É muito difícil. E para escrever há 30.000 caracteres,

embora quem conheça de 300 a 800 já possa ler coisas mais comuns inclusive os

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pensamentos do presidente Mao. A Angelina fala bem. E as meninas (nove e sete anos) se

expressam melhor em chinês do que em português. . .

- E divertimentos?

- Bem, nos encontramos com o outro casal brasileiro que também trabalha na Rádio

e de vez em quando vamos ao teatro e aos parques. Há parques lindos em Pequim,

conforme vocês verão amanhã nas festas do 19 de outubro. . .

- Tens aparelho de TV?

- Não. Mas há uma sala coletiva no edifício, onde podemos todos assistir aos

programas. Meu maior entretenimento é ouvir rádio. Consigo captar emissoras de quase

todo o mundo. Pode gravar (e anotar) que das brasileiras a que melhor se ouve aqui,

especialmente quando o sol está nascendo ou morrendo - é a Rádio Guaíba, de Porto

Alegre.

Nossa conversa se prolonga horas a fio, primeiro ainda à mesa do hotel, logo em

meu quarto. Mais tarde nos encontraríamos várias vezes, sempre tendo ambos o cuidado de

não deixar o assunto enveredar pelo terreno político, a não ser o das relações China-URSS,

a respeito das quais ele pensa exatamente como qualquer chinês - ou seja, que a Rússia se

constituí o maior inimigo não só da China, como de todo o mundo.

Duas perguntas ainda:

- Não pretendes voltar para o Brasil, Jaime?

- Já que agüentamos a mão tanto tempo, agora vamos esperar um pouco mais, até

que as garotas aprendam bem o idioma e aí tentaremos regressar. Com esse aprendizado, o

futuro delas estará garantido: serão as duas únicas brasileiras a dominar completamente o

chinês.

- Desculpa o pieguismo, mas só para concluir nossa conversa: vocês são felizes

aqui?

- Olha, se não fosse a saudade, sim: seríamos completamente felizes. Mas, em

compensação, todos os sábados, cozinhamos lá em casa uma feijoada à brasileira. Se

ficares até lá, és nosso convidado. . .

Jaime se despede, com a sua solidão e a sua saudade.

Botei a roupa e os apontamentos em ordem, são quase sete da tarde-noite, começa a

chover fininho. Uma multidão de ciclistas de capa plástica azul-celeste desfila pela

avenida, nas calçadas, multidão maior ainda, as sombrinhas também são azul-celeste.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Será...

Toca o telefone.

- Senharr Gomes?

- Sim, Mi?

- Pode nos receberr agorra? Temos uma surrprresa parra a senhorr.

Sinto um calafrio. O que teria feito de errado? Logo me lembro das torturas

chinesas mas procuro manter a calma:

- Claro, Mi. Podem vir.

Visto-me e fico esperando, apavorado. Entram ele e o Li. Ele fala demoradamente,

ora olhando para mim, ora para o Mi que finalmente traduz:

- Sabemos do interesse que há quatro anos vem demonstrando em visitar a China.

Por razões que não podíamos superar (já que não dispúnhamos de um número suficiente de

guias que falassem o português), somente agora pudemos autorizar a sua viagem - e

esperamos que ela contribua para a amizade entre a China e o Brasil. Até agora o senhor

tem tido liberdade total para fotografar, gravar e transmitir pelo rádio tudo o que quis. Mas

a maior prova de nossa. consideração aqui está, não é camarada Li?

O camarada Li puxa do bolso um envelope e me entrega. Nele está subscrito meu

nome em português e em caracteres chineses. Não sei o que pensar. Cadeia? Torturas,

Deportação?

- Abra, abra - diz Mi, enquanto Li me olha todo sorrisos.

Abro e não entendo o conteúdo, todo em ideogramas vermelhos. Tudo está ficando

vermelho para mim. Olho para Li e olho para Mi com todas as minhas interrogações. Li

responde e Mi traduz:

- Temos a honra de ser portadores de um convite de nosso grande presidente Mao

para o senhor participar amanhã do banquete comemorativo do 26º aniversário da

revolução popular proletária no Palácio da Assembléia do Povo.. .

Suspiro sofregamente:

- Bah, Mi. Diga ao Li que nem sei o que falar; nem como agradecer.

Mi diz ao Li que não sei o que falar, nem como agradecer ao nosso estimado Presidente Mao. Li

aprecia. Apertamos firmemente as mãos e ambos saem. Antes de cruzar a porta, Mi vira-se e com um senso

de humor que não lhe suspeitava:

- O convite é por seus méritos, senharr Gomes e não por sua contribuição à

Revolução Cultural. . .

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Cidade Proibida

Amanhece chovendo nesta terça-feira 30 de setembro de 1975 e Pequim está

coalhada de chineses de todas as províncias e de centenas de delegações estrangeiras, que

vieram assistir aos festejos do dia 1º de outubro. Uma ênfase especial foi dada aos países

do terceiro mundo, sobre os quais - hoje muito mais através de ações do que de palavras- a

China busca a liderança em detrimento da Rússia.

Pequim, pois, está lotada de negros de todos os matizes, desde os angolanos, a pele

muito mais para o ébano do que para o marrom, até nigerianos de faces marcadas a

pontaços de flecha e epiderme preto-azulada. Há, também, muitos árabes e não raros

delegados de países satélites da União Soviética: uma delegação composta por mais de

cinqüenta búlgaros, terminou por completar ontem a lotação do Hotel das Nacionalidades

e, segundo consta, a partir de Pequim deverão cumprir o mesmo itinerário que o nosso. Há,

também, uma excursão da Argentina, em meio a qual localizo dois gaúchos, cujo nome não

lembro e se lembrasse não mencionaria para evitar-lhes encrencas futuras. É na companhia

deles, escoltados agora por um novo guia - o señor Ho - que fala um espanhol perfeito e

que vem assessorar Mi, Li e Liu, que começamos a visitar a Cidade Proibida.

Proibida porque, sendo residência das dinastias Ming e Ching, permaneceu

interditada ao povo, escondida por detrás de seus muros de 10 metros de altura, protegidos

ainda por um fosso profundo e cheio d'água, com 52 metros de largura. Perdoem os

números, logo por parte de quem, como eu, que sempre fui muito fraco em matemática,

mas eles me foram ditados pelo señor Ho, que depois veio conferi-los em meu caderno.

Fez uma correçãozinha aqui, outra ali e acabou me dizendo que «ahora si, está correcto,

señor Alcaraz».

Pois bem, os Ming mandaram construir a Cidade Proibida em 1406, quarto ano do

reinado de um certo imperador chamado Yung Lo. As obras se estenderam por quatorze

anos e duzentos mil coolies nelas trabalharam. As pedras vieram das vizinhanças de

Pequim e suas preciosas madeiras das distantes e impenetráveis florestas do norte. .. O

resultado foi a construção de um palácio que ainda hoje ocupa um retângulo de 750 por

960 metros o que nos dá - sempre segundo a aritmética do señor Ho - uma área de 720.000

metros quadrados!. . .

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Durante cinco séculos, 24 imperadores ocuparam as dependências da Cidade

Proibida) entrincheirados dentro de suas muralhas purpúreas e nadando em ouro, enquanto

o povo chinês morria de fome. Diversas tentativas de invasão do populacho, rebelado nas

épocas de maior fome, (quando chegavam até a praticar a antropofagia) foram repelidas

pela guarda imperial, mas assim mesmo o palácio sofreu alguns incêndios - daí a existência

até hoje em seus pátio internos de enormes recipientes de bronze cheios d'água, espécie de

precursores primitivos de nossos extintores modernos. Ê difícil para mim, medíocre que

sou em matéria de turismo, descrever esse que é, hoje, o maior museu da China e um dos

mais assustadoramente imponentes do mundo.

Em princípio, a Cidade Proibida é constituída por uma seqüência de pavilhões, aos

quais se tem acesso por portas postadas nos quatro pontos cardeais dos muros que a

circundam. Basicamente a zona murada se divide em três partes, isoladas uma da outra por

amplos pátios. Entrando pela porta Wu Men, ao sul, e seguindo em sentido norte, o turista

(e outrora os imperadores) cruza os salões (em forma de pagodes) destinados à vida oficial,

atravessando respectivamente - prestem atenção aos nomes, que eles refletem toda uma

época e toda uma filosofia - a Sala da Harmonia Suprema, a Sala da Harmonia Perfeita e a

Sala da Preservação da Harmonia. . .

Mas vamos adiante, que vale a pena: agora a gente vence a Porta da Pureza Celeste

e é então a parte íntima do palácio e da vida dos Ming e dos Ching, em três conjuntos

diferentes - o Palácio da Pureza Celeste, a Sala da União e, finalmente, o Palácio da

Tranqüilidade Terrestre. Tranqüilidade que foi abruptamente quebrada com a proclamação

da República da China, em 1912, pelo dr. Sun Yat-Sen, que redundou na abdicação do

regente-menino Chun, derradeiro membro da dinastia Ching, que há muito era fantoche

dos ocidentais e dos russos, que por diversas ocasiões pilharam o palácio.

Mais tarde as tropas do Kuomitang (Chiang-Kai-Shek) igualmente saquearam a

Cidade Proibida que, em 1949, com a vitória de Mao-Tsé-Tung, foi transformada em

museu franqueado ao povo, deixando, finalmente, de merecer seu título. Apesar de todos

os saques e de todos os vandalismos que sofreu, é impressionante a visão dos tesouros ali

mantidos. Todo o conjunto arquitetônico compõe-se de 9.000 peças, que ocupam uma área

útil de 150.000 metros quadrados, em meio de suas hoje apenas históricas muralhas.

Somente a incomensurável riqueza de uma nação, habitada por um povo de

celestial, escrava e dócil paciência, poderia ter permitido a construção e manutenção

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

durante quinhentos anos de uma aberração de tal espécie. Ao vermos os salões da Cidade:

Proibida) ao nos espantarmos com as riquezas ainda hoje ali conservadas, podemos sem

dificuldades imaginar o tipo de vida que levaram seus donos e justificar a revolta de ódios

acumulados que culminou com a implantação do comunismo na China.

Mas agora são seis da tarde e, pela primeira vez desde que pisei em terras asiáticas,

aqui estou vestindo terno e gravata, sem gravador e sem câmara - as ordens foram severas

nesse sentido - esperando a condução que vai me levar à versão moderna e simplista da

Cidade Proibida: a Assembléia do Palácio do Povo, obra arquitetônica que mais orgulha os

comunistas chineses, não só pela perfeição de seu acabamento como por ter sido construída

em apenas dez meses.

Em Pequim, ao contrário de Shangai e Cantão, o automóvel não é um elemento

estranho à paisagem. Ele aqui é visto em grande número e pertence não só às delegações

estrangeiras, como às repartições públicas. Há, ainda muitos táxis integrantes de uma

cooperativa manobrada pelo estado. Invariavelmente todos os carros chineses, sejam os

quase luxuosos Shangai sejam os mais modestos Bandeira Vermelha têm suas janelas

traseiras e os seus vidros laterais emoldurados por cortinas brancas, que não permitem a

visão de quem neles está sentado. . .

Às seis e meia, a condução nos apanha, a senhora Germana Travassos e eu, únicos

brasileiros (além do Jaime e da Angelina, como fiquei sabendo mais tarde) presentes ao

banquete comemorativo da fundação da República Popular Comunista. A senhora

Travassos é uma espécie de Marco Polo moderno e de saias, que desbravou os caminhos

turísticos da China aos brasileiros. Já organizou seis excursões, participou de todas elas e

pretende continuar no ramo ainda por muito tempo. Confessou-me à certa altura que a

Polícia Federal a tinha chamado, perguntando-lhe por que não promovia excursões à

Disneylândia em vez de Pequim e sua resposta, como não poderia deixar de ser (devido, é

claro, a seus cabelos brancos), foi a de que:

- «Afinal de contas, vocês pensam que eu sou criança? . .»

E em companhia de nossa guia brasileira, de uma intérprete chinês-inglês, de seis

jornalistas do Guardian, jornal esquerdista de Nova Yorque, e de um alto funcionário do

Departamento de Turismo de Pequim, que nos sentamos agora numa das quinhentas mesas

redondas de dez assentos cada uma, que não chegam a lotar completamente a gigantesca

sala da Assembléia do povo chinês. . .

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Toca algo que deve ser .o hino chinês e todos se levantam, enquanto uma comitiva,

tendo à frente o Vice-Primeiro Ministro Teng Hsiao Ping, escoltado por um grupo de

dignatários, assume a presidência do banquete, numa mesa retangular e elevada. A

multidão saúda a comitiva, batendo ritmicamente palmas cadenciadas. Simultaneamente,

garçons levantam as toalhas de plástico transparente que cobriam as iguarias, todas frias, e

na base do camarão, carnes (como sempre misteriosas e não identificadas) e legumes. Não

servem arroz. De bebida, laranjada e cerveja (morna), além de um líquido vermelho, com

um gosto que se situa entre o vermute e o Porto, e uma aguardente branca, extraída do

sorgo, que se chama mao-tai e que goza de grande popularidade na China. . .

Nosso anfitrião, depois de conversar sobre generalidades, nos pergunta o nome e

profissão de cada um. Os americanos, babam-se de prazer e êxtase «ah! que salão mais

bonito:», «ah! quantos amigos, todos juntos», «oh! que pena que o camarada Chou não

pôde vir este ano», e assim por diante. Além da baboseira dos gringos (um deles me diz

que há cem mil americanos com pedidos de visto para a China) e da comida ruim, o que

resta é apreciar o espetáculo humano e começar a ler o discurso, que nos distribuíram

traduzido para o inglês e que vai ser pronunciado pelo anfitrião. Nele Teng Hsiao Ping

afirma como peroração e grand final que «devemos seguir os pensamentos do Presidente

Mao e continuar cavando túneis mais profundos e armazenando grãos, sem buscar a

hegemonia».

O banquete dura exatamente duas horas e a única oração, menos de dez minutos. Ao longo de seu

percurso, o camarada comissário ergueu doze brindes à amizade com seu cálice de mao-tai e não tivemos

outro remédio senão acompanhá-lo. Ele emborcava o copo de uma vez só e o virava de boca para baixo sobre

a toalha, dando-nos a entender que deveríamos imitá-lo, senão não éramos amigos. No primeiro fiz um

fiasco, me engasguei e tossi até a alma, depois fui me acostumando, achando o ambiente melhorzinho, a

companhia dos americanos mais agradável - para um deles cheguei a dizer what beautiful dinner comrade,

everybody is amigo, isn’t it true? And what about our dear amigo Nixon?- mas apesar de todo o mao-tai senti

alívio quando a festa acabou. Há muitas e modernas maneiras ainda de praticar a tortura chinesa sobre

gaúcho xucro como eu - e o banquete dos 26 anos da República Popular da China foi uma delas.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Sucessão

O inteligente leitor e a perspicaz leitora que têm me dado a honra de acompanhar essas histórias

sobre a China perceberam que ainda não me detive sobre vários aspectos de fundamental importância para

avaliar a situação daquele país, dentre os quais um ressalta - o da sucessão de Mao-Tsé-Tung. Confesso que

não me sinto apto para dissecar tal tema, mas por outro lado, posso esclarecer algo a respeito, não só devido

às leituras que fiz, como às conversas que mantive e as observações que realizei. Em primeiro lugar, consta

que Mao-Tsé-Tung está muito enfermo, atingido por esclerose e pelo mal de Parkinson. Mais doente ainda se

encontra Chou-En-Lai, este sim, há vinte meses hospitalizado e que desde 7 de setembro de 1975 não recebe

nenhum visitante estrangeiro. Chou estaria tomado por um câncer generalizado, oriundo do pâncreas e seu

período de vida não deverá ultrapassar os próximos meses. Na China de pós-revolução cultural, seu cargo e

seu papel tem assumido maior importância do que o do próprio Mao, que afinal, e para simplificarmos as

coisas, se situou na posição de deus vivo do regime, sendo Chou o seu arauto.

As funções de Chou-En-Lai vem sendo exercidas ultimamente e em quase toda a sua totalidade por

Teng Hsiao Ping, que presidiu o banquete comemorativo ao aniversário da revolução, ato que

tradicionalmente cabia a Chou, o qual, ainda no ano passado saiu do hospital especialmente para a

solenidade. Teng foi uma das vítimas do expurgo nos meios dirigentes em 1966, quando foi destituído de

todas as suas funções. Mais tarde e após várias humilhações que caracterizam a autocrítica e a retratação

determinadas pela doutrina socialista, foi reabilitado na primavera de 1973, passando, para surpresa geral, a

exercer um dos mais altos cargos da República Popular da China. Os sinólogos duvidam possa ele vir a ser o

novo timoneiro da nau comunista chinesa após a morte de seus dois principais líderes. Fala-se muito de uns

tempos para cá em Wang Hung Wen (38 anos), operário oriundo das tecelagens de Shangai e que por muitos

é apontado como um dos mais prováveis delfins da China. Na verdade, tudo o que se disser a respeito da

sucessão chinesa será especulativo e vão. O regime é tão palaciano e impenetrável como o de seus

antecessores Ming e Ching e seu sistema, entrincheirado na Cidade Proibida de seus pensamentos, é capaz de

surpresas que podem abalar a China - e com ela o mundo. Uma coisa é certa: Mao (82 anos) e Chou (77)

estão doentes. O regime me parece que não.

A última e definitiva prova da inteligência de Mao-Tsé-Tung, que além de ser guerreiro e político é

filósofo e lírico poeta, foi o desencadeamento - por ele exclusivamente ordenado - da revolução cultural, que,

de 1966 a fins de 1968, realizou um verdadeiro expurgo em todas as camadas dirigentes chinesas, desde a

política até a militar e social.

Passando por cima da geração, que normalmente o deveria suceder, Mao entregou a tarefa de

limpeza à novíssima geração, nascida, criada e lavada cerebralmente desde o triunfo dos comunistas em

1949. Essa a origem da verdadeira guerra civil (que foi sobretudo um conflito de gerações) que abalou a

China nos fins dos anos 60 e cujas repercussões ainda persistem. Ninguém foi poupado e sob o título de

revisionistas, figuras obscuras e figuras importantes foram varridas literalmente da face da terra política

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

chinesa, não escapando nem sequer o marechal Lin Piao (apontado oficialmente como sucessor de Mao),

nem o próprio presidente da República, Liu Shao-Shi. O golpe branco desencadeado por Mao-Tsé-Tung (e

segundo sua doutrina, tais limpezas devem ser realizadas periodicamente) teve por mérito revitalizar a

revolução que estava-se aburguesando e tomando os perigosos rumos seguidos pela Rússia, desde que

Kruschev assumiu o poder. Hoje em dia, o maior cuidado do chinês é não se tornar revisionista e há um

regime de verdadeiro terror a perseguir seus pensamentos e suas atitudes. Qualquer deslize no sentido de

escorregar para o que possa ser burguês lhe é imediatamente apontado por seu companheiro de trabalho, seja

no campo, seja na fábrica ou em sua própria família. Caso a atitude burguesa persista, o pretenso faltoso é

denunciado ao comitê revolucionário, ao qual é subordinado, e submetido ao Comitê do Partido e às massas,

por quem é reeducado, punido e até mesmo eliminado.

Os mais pessimistas afirmam que a China é uma imensa prisão com 900 milhões de encarcerados,

sujeitos à vigilância recíproca.

Os mais otimistas a encaram como um laboratório experimental, do qual pode surgir uma filosofia

que venha em benefício de toda a humanidade.

Eu a vejo apenas como uma república totalitária, dentro da qual todo o individualismo foi ou

procura ser abolido, onde o coletivo é muito mais importante do que o privado e o homem, completamente

despersonalizado, é apenas, um tijolo num muro formado por novecentos milhões de outros, indiferençados

na cor, na forma e na essência. Se erguendo esse muro que em quase tudo separa o povo chinês do homem e

da natureza humana, eles estariam conseguindo ou conseguirão construir um mundo perfeito - ótimo. ótimo

para eles. Porque para nós, em hipótese alguma, a experiência chinesa, em seu todo serve ou tem condições

de ser adaptada.

Falando em muro, estamos seguindo para a Grande Muralha. O percurso é de setenta e cinco

quilômetros por uma estrada estreita, península de asfalto negro em meio a um mar verde e imenso de

hortaliças, de milho e de sorgo, cujas ondas saem daqui e vão desdobrar-se ao longe, nas montanhas que

bordam o infinito. . .

Sobre as montanhas, vestígios de uma antiga construção: é a Grande Muralha. Ho, sentado ao meu

lado, vai informando o que a Muralha revela, o tradicional espírito não belicoso e apenas defensivo que

sempre caracterizou o povo chinês. A ciclópica construção teve origem em pequenos muros isolados,

erguidos pelos senhores feudais por volta do século II Antes de Cristo, emendados finalmente numa única e

monolítica defesa por um certo general Meng Tien, por ordem de um incerto Shi-Hoang-Ti, que se intitula

entre outras coisas primeiro chefe da humanidade. A ligação dos muros isolados teria custado quatorze anos

de trabalhos (de 221 a 207 A. C.) e nela teriam trabalhado trezentos mil homens. Naquela época, toda a

China não contava mais de vinte milhões de habitantes. A rigor, a grande muralha nunca deteve invasão de

importância ao longo de seus 4.000 quilômetros de extensão. Serviu mais para impedir que os nômades

cruzassem as fronteiras do país, como proteção às plantas contra os ventos das estepes - e basicamente como

via de transporte entre um núcleo populacional e outro. Séculos mais tarde, já sob a dinastia Ming, foi

reconstruída e então atingiu seu esplendor, com quinze mil postos de guarda e vinte e cinco mil torres,

distanciadas vários quilômetros umas das outras. Sua comunicação era feita através de fumaça durante o dia e

fogueiras durante a noite. Apesar de todo o esforço, os tártaros a cruzaram, derrubando primeiro alguns

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

trechos da muralha e logo a dinastia Ming inteira.

O ônibus pára na encosta da montanha e a galgamos até o pé do muro. Ele está quase todo em ruínas

no resto de seu percurso (que outrora subia e descia as montanhas mais escarpadas), mas ali foi reconstituído

naqueles que deveriam ser seus termos e dimensões iniciais. Sua altura vai de sete a oito metros, a base tem

seis e o cimo cinco metros e meio. Seu entulho é de saibro e terra socada e o revestimento de tijolos marrom

escuro. A cada 200 metros se ergue uma torre (na parte reconstruída há meia dúzia delas) que se alinham em

seus dois lados que controlavam a fronteira exterior.

A obra não me causa a mesma impressão que tive quando vi pela primeira vez as pirâmides do Egito

nem o grande dique da Holanda. Creio que, principalmente, por tratar-se apenas de reconstituição destituída

de sua autenticidade milenar. O mesmo efeito não se observa nos milhares de chineses (especialmente

soldados), que não escondem seu deslumbramento. Os mais ricos (e felizes proprietários de uma máquina

fotográfica, que devido ao seu preço não está ao alcance da maioria) fazem questão de se fotografarem para

ilustrar o grande momento. Entre o grupo brasileiro, as impressões se dividem. Michel lidera os mais

entusiasmados. Mas, capitalista-reacionário prático que é, faz logo sua crítica, que Ho meticulosamente anota

para divulgar na primeira sessão de autocrítica dos guias:

- Já que a China está em política de distensão com os americanos, já que os seus hotéis são

horríveis, por que vocês não mandam os Estados Unidos construir um grande motel aqui?

E olhando, sonhador, para as montanhas e já com respeitável platéia em volta:

- Imaginem só, que beleza, um Muralha Hilton ou um Sheraton Great Wall com piscina, ar

condicionado e sobretudo! - gelo para o uísque!. .. Pode Crer, Ho, é sucesso garantido.

Depois, muito sério e ante a impassibilidade de señor Ho:

- Olha, se tiver algum problema, o hotel pode ser instalado do outro lado da muralha. Para os

americanos não haverá dificuldade, Kissinger é o maior especialista do mundo em pular muro. . .

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

A ordem de Érico Veríssimo

Não sei como um jornalista chinês descreveria os festejos do 7 de setembro no Brasil. Só posso

dizer que ele sentiria uma grande diferença das comemorações da grande data de seu país: o lº de outubro.

Nesta quarta-feira de primavera-verão de lº de outubro de 1975, por exemplo, encontro toda Pequim e seus

sete milhões de habitantes vestidos com cores e espírito de uma grande quermesse. Há muitos anos que os

desfiles militares foram abolidos, o que há agora é uma gigantesca manifestação de cantos e de danças a

esparramar-se da Tien An Men que eles, não sem orgulho e não sem razão, afirmam ser a maior praça

existente no mundo, para todos os bairros e parques da cidade.

Os festejos principais se concentram no Parque Peijai e no Palácio de Verão. Ê para este que

seguimos agora, quando são apenas oito horas da manhã. Nosso ônibus atravessa multidões compactas de

pedestres e de ciclistas, quase todos trajando roupas semelhantes, feitios idênticos na estatura e na fisionomia.

A única discrepância na uniformização geral é constituída pelas crianças - e como há crianças em Pequim!...

Meninos e meninas, bandeirinhas vermelha na mão, caminham apressadamente junto aos pais rumo ao local

dos festejos. Somente no Palácio de Verão, onde a muito custo acabamos de chegar, devem estar

concentradas várias centenas de milhares de criaturas. O policiamento de trânsito é quase invisível, mas

assim mesmo suficiente para mandar que todos abram alas à passagem dos amigos estrangeiros. O Palácio de

Verão, na verdade, é um imenso parque a circundar um lago não menos imenso onde certa vez uma

imperatriz maluca que adorava o mar, mas enjoava com o balanço das ondas - da qual a nossa Chica da Silva

não passou de modesta, porém convicta réplica crioula - mandou ali construir um barco inteiramente de

mármore.

Não é lenda, pois a nau ainda se encontra, escarrapachada com seu peso às margens do lago, este

sim verdadeiro. Como apesar de suas dimensões, embora despropositadas para o tamanho do parque, o lago

não produzisse ondas, a Chica chinesa mandou que colocassem um espelho balanceado sobre o tombadilho

do mármore, o qual, agitado por escravos competentes, simulava estar a imperial embarcação enfrentado a

mais feroz das procelas. Aí a imperatriz se divinizava, com os poderes de fazer cessar a tempestade, enjoava

apenas um bocadinho, dando rápida vomitada em seu lencinho de pura seda e ia fazer cafuné no imperador,

enxotando os nobres e as concubinas que o cercavam. . .

Isso aconteceu lá pelo século XII de nossa era, mas hoje, neste 1º de outubro, a visão do barco serve

apenas para Ho tirar mais uma lição de moral e concluir sobre os malefícios que a Revolução eliminou, não

permitindo mais que o povo fosse oprimido, por imperatrizes desvairadas ou imperadores cruéis, isto sem

mencionar o abjeto social-imperialismo soviético e o não menos pernicioso imperialismo norte-americano. . .

A multidão se comprime em volta de centenas de clareiras, onde meninos e meninas cantam e

dançam peças populares exaltando sucessivamente o presidente Mao, o Glorioso Partido Comunista da

China, os operários das fábricas, as heróicas comunas populares, cuja produção agrícola vem batendo todos

os recordes, o invencível Exército Popular Vermelho, o triunfo do presidente Mao e da Revolução Cultural

sobre os revisionistas (mas cuidado! eles são como o cruel dragão que tem mil vidas e pode botar as garras

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

para fora a qualquer momento. Por isso, a qualquer suspeita que ninguém hesite em informar o Comitê

Revolucionário), a Gloriosa Bandeira Vermelha e a amizade entre os povos de todo o mundo.

As meninas vestem saias curtas cor de rosa e blusa branca e tem o rosto empapado de rouge e os

lábios vermelhos de batom. Foi exclusivamente entre as garotinhas, e por ocasião de suas demonstrações de

canto e balé, que vi o emprego de cosméticos na China. Nenhuma moça, nenhuma senhora se pinta, o que

representaria uma atitude burguesa e como tal revisionista.

Durante as três horas em que percorremos o Palácio de Verão e com ligeiras variações as músicas e

as danças não teceram outra temática nem outra coreografia do que tínhamos visto em suas primeiras

demonstrações. Havia também; em outros círculos orquestrações de temas revolucionários, cantores ou

cantoras interpretando trechos de Óperas de Pequim, tudo dentro do mesmo diapasão e dos mesmos motivos

doutrinários. O povo demonstrava adorar tudo o que via e ouvia, mas para nós, burgueses ocidentais, o

espetáculo, depois de seus primeiros momentos, começou a tornar-se cansativo. O único que não nos cansou

foi a visão do público, os pais de mãos dadas com os filhos, as mães com as filhas, os quais tomando sorvete

ou comendo balas pareciam estar todos irradiando felicidade. Aliás, os festejos de 1º de outubro - que se

prolongam por quatro dias - são os únicos dias de férias de que gozam os operários e trabalhadores chineses,

além de um dia de repouso semanal, mas para merecê-los, devem dobrar quatro folgas anteriores.

- Só quatro dias por ano Ho? Não é muito pouco.

- Mesmo se fosse não poderíamos adotar uma atitude burguesa a respeito, pois estamos construindo

um mundo socialista e não há tempo a perder com desviacionismos capitalistas.

Dito o que, embarcamos no ônibus e voltamos para o Hotel. Sem comentários, é claro.

No começo da noite, quando Pequim toda parecia um parque de diversões, com sua iluminação,

música e colorido característico, consegui enfim estabelecer minha segunda comunicação-rádio com o Brasil.

Era o dia em que o Correio do Povo completava seu 80º aniversário - o que prova que nós outros também não

deixamos de ter o nosso 1º de outubro em Porto Alegre - e depois de contar o que vi e lembrar lá do meio da

Cortina de Bambu, as vetustas glórias do jornal de Caldas Júnior, tive uma surpresa que me embasbacou: do

outro lado do circuito, estava a voz calma, pausada e simpática de Érico Veríssimo, ele falando de sua casa à

rua Felipe de Oliveira, 1415 em Petrópolis, Porto Alegre, Brasil e eu do quarto 722 do Hotel das

Nacionalidades, à avenida Chang Han s/n em Pequim, China. . .

Ao final do diálogo, uma recomendação dramática:

- Olha, não deixa de comer um pato laqueado de Pequim em meu nome. . .

O pato laqueado de Pequim, que falta imperdoável, meu Deus! Há quantos dias já estava eu na

capital da China e nem sequer havia me lembrado do capitoso animal!.. .

Imediatamente tomei as providências devidas, mobilizando, simultaneamente Mi, Ho e Li e Liu para

que, num trabalho de mutirão - tipo comuna popular - dessem um jeito de me colocar diante do pato àquela

noite mesmo. Era pedido do Érico Veríssimo e tais coisas devem ser levadas muito a sério, sob pena do

faltoso virar bandido em seus romances (ou em suas memórias).

- Mas é muito tarrde, senhorr Gomes – protestou o Mi.

- Que muito tarde ou muito cedo!. .. O Érico mandou, o pato tem que ser trinchado hoje. E bati o

telefone.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Paralelamente comecei a desferir uma série de telefonemas. Primeiro convocando a senhora

Travassos, que com seis viagens à China já devia estar a par da anatomia do pato e logo, ao ser informado

pela referida dama de que se tratava de alimento um tanto caro e pesado, contatei com os elementos

representantes das altas finanças e da medicina que integravam o grupo, os quais se babando

antecipadamente de gozo (além do pato ser laqueado e de Pequim era sugestão do Érico Veríssimo que culto,

que chique), acorreram pressurosos ao saguão do Hotel das Nacionalidades, rumo ao Pato. Antes de embarcar

num ônibus especial, obtido graças à eficiência do pressuroso Mi, foi feito um acordo proibindo trocadilhos

sobre pato, patas etc. - um pacto entre cavalheiros, enfim.

O nome do restaurante é Pequim Kao Ya Tien, que se traduz exatamente como Pato Laqueado de

Pequim. Já se vê que não há engano algum quanto ao objetivo. Somos quinze pessoas, inclusive o Jaime e

mulher, nossos convidados e a conta total (acertada antecipadamente) será de 35 yuans por pessoa, que

equivale a cerca de cento e sessenta cruzeiros - o que ganha por mês um operário na China viu só, Érico?

É que a senhora Travassos escolheu o menu mais caro - qualquer coisa como um jantar de

mandarim, dos tempos anteriores à revolução. Sentamos numa sala exclusiva para estrangeiros, no 19 andar,

pois a parte térrea é reservada aos chineses e ali os preços são infinitamente mais baixos. Há vários deles em

mesas ocupadas tão somente por homens. Me pareceu ali que a igualdade absoluta entre sexos pregada por

Mao não atingiu ainda os seus restaurantes. O preço estipulado incluía não só o pato, como uma série de hors

d'oeuvre além de pratos anteriores e posteriores, de refrigerantes, vinhos e aguardentes. Sobremesas não se

usam na China nem gorjeta. A gorjeta não é proibida, mas simplesmente desprezada pelo chinês, que a toma

como uma ofensa e em hipótese alguma a aceita. Mas vamos ao pato, é ordem do Érico.

Primeiro servem os aperitivos: o wei mei si (vinho meio vermute, meio Porto), duas garrafas de gan

bai pu tao jiu (vinho branco seco) duas outras de zhang yu hong pu taojiu (vinho tinto, meio adocicado), fora

uma bateria de mao-tai, que é a tal aguardente de sorgo. É realizada uma conferência urgente a respeito das

disponibilidades de engov de cada um - e com amor febril pelo Brasil vamos ao ataque.

A louça é toda de porcelana, composta de pratinhos pouco maiores do que os nossos pires e de

tigelinhas. Garçons vestidos de branco começam o desfile, cada um trazendo um prato. Por ordem nos

servem:

1 - song hua: ovos de pato de cor preta, aspecto gelatinoso repugnante que permaneceram cem dias

enterrados, envoltos em palha de milho e numa mistura de argila e cal;

2 - ou: raizes de lótus, com gosto de cebola adocicada;

3 - mo-gu: cogumelos ensopados, pretos;

4 - xia: mãe-d'água seca (! ) acompanhada de camarões anões;

5 - ge-li: espécie de ostra, ao que parece, secada ao sol e regada a molho de soja;

6 - su yu: peixe não identificado dissolvido numa mistura de vinagre com açúcar;

7 - bao yu: lesmas do mar, cruas;

8 - zha ya gan: figado de pato frito;

9 - yu-tu: estômago de tubarão seco;

10 - mian tiao: talharim ao molho de soja.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

O décimo primeiro prato foi uma yan wo tang ou seja, sopa de ninho de andorinha, o qual como se

sabe é tecido com a baba do próprio pássaro e que se glorifica como um dos pratos mais reputados da cozinha

chinesa. Ai então pensei que ia morrer sem ver o pato. Pura ilusão. O pior ainda estava para vir. É que mal

provados (e às vezes totalmente dizimados) os pratos iniciais, enquanto esperávamos a entrada de nosso

personagem principal, eis que nos servem ainda - hao you niu rou: bife com molho de ostra, esclarecendo-se

que o bife é de carne de búfalo; sha yu: enguia ensopada; tang pai gu: costeletas de porco açucaradas; xang

chang: tigela inteira, com uma enorme variedade de salsichas e lingüiças, sei lá; e – she, a popular e

apreciadissima sopa de serpente, com a dita boiando em apetitoso caldo verde. Aí mudamos de assunto, antes

que entrassem com um macaco para que lhe comêssemos o cérebro, o bicho vivo ainda, é claro - ou que ele,

aproveitando nosso empanturramento àquela altura generalizado, tentasse fazer o mesmo conosco. . . A

verdade é que depois de tantas entradas e saídas, o pato parece não mais caber nestas linhas sob pena de

causar indigestão no leitor. Assim sendo, fica ele para o próximo capítulo destas emocionantes memórias, nas

quais o autor, com prudente habilidade, procura conciliar a sutileza da política com o requinte da

gastronomia, ambas chinesas. O Érico que me perdoe, mas amanhã comeremos o pato. É um pacto.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

O pato e o ciclista

Conforme havíamos prometido ao Érico Veríssimo e a nossos impacientes e

gastronômicos leitores, vamos hoje trinchar juntos o famoso pato laqueado de Pequim em

seu reduto celestial e definitivo: o restaurante Pekim Kao Ya Tien. Já ligeiramente refeitos

do princípio de indigestão que nos afligiu depois da comilança de 15 (quinze) pratos de

entrada, passamos a arrotar (o que é considerado muito fino e de muita educação na China)

e a aguardar o importante e presumido personagem. Entrementes e sempre seguindo os

cânones da cozinha mais velha, mais tradicional e para muitos mais requintada do mundo,

os garçons serviram-nos num grande prato xiang gua (melão), li (peras), pu tao (uvas), li zi

(ameixas), wu hua guo (figos) além de duas dúzias de ju zi, (tangerinas) que na França,

Espanha e em algumas zonas do Rio Grande do Sul são chamadas de mandarinas, por

terem sido, outrora, as frutas prediletas dos mandarins. .. Esse sábio interregno,

interrompendo o sabor xian (salgado) com uma ingestão de tian (doce) sempre fez parte do

inteligente ritual gastronômico chinês - preparando o gourmand para a segunda e principal

parte da refeição. E eis que ela chega, trazida pelo triunfal cozinheiro, numa bandeja de

prata. À primeira vista tem-se a impressão de tratar-se apenas de um pato, um pouco

lustroso e corado, porém pato.

- Mas repare só os detalhes - aponta-nos Jaime. Tudo nele é diferente. Veja a

coloração brilhante, as formas perfeitas, o aroma inebriante. . .

Vejo a coloração, a forma, o aroma, me preparo para o combate, mas estranho:

- Um pato apenas para tanta gente? Por incrível que pareça o intermezzo das frutas

já tinha feito com que eu (e a maioria) tivesse esquecido o pantagruelismo anterior. Fraca e

venal é a memória, a gratidão e o estômago dos homens! Mas Jaime com treze anos de

China nos tranqüiliza:

- Não te preocupes que tem toda uma criação lá dentro.. .

Depois de seu desfile de toureiro em dia de glória em arena ensolarada o cozinheiro

se retira, voltando dez minutos depois com o pato devidamente trinchado. Nova explosão

de aplausos - e mãos à obra! Era um bom e honrado pato, além de pecaminosamente

apetitoso. Dele hoje nada mais sobra a não ser a lembrança gloriosa, que procuro nesta

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

obra eternizar. Não saberia como descrever as nuances de seu sabor nem as sutilezas de seu

tempero, muito menos a tenrice de suas carnes. Mas para não ficar em débito com os

nossos leitores (e muito menos com o Érico e seu dileto e enfastiado filho Luiz Fernando)

fiz questão de ir à cozinha em companhia de Mi e saber das coisas:

- O eminente camarada cozinheiro pode fazer o favor de contar-me como se

prepara esse maravilhoso pato? Seria uma imensa gentileza que o senhor prestaria a um

amigo meu, e que é também um grande amigo da China, que está longe, no Brasil e que

ficará encantado com a sua arte. . .

O cozinheiro (afinal todos são humanos, inclusive e até mesmo os cozinheiros

chineses) apreciou o elogio, começou a falar, Mi a traduzir e eu a anotar:

- Esse pato é criação da comuna a qual se integra o restaurante. Normalmente é

alimentado com sorgo, milho e soja. Entre três e seis meses está pronto para o supremo

sacrifício. É supliciado pelos meios tradicionais (pescoço torcido) e dependendo a vapor.

Suas vísceras são extraídas por um orifício praticado sob sua asa direita e todas

aproveitadas, menos os intestinos. Então, com uma bomba (dessas de bicicleta) lhe é

inflado ar sob a pele. Em seu interior injetamos água até a metade através do traseiro, que

imediatamente é tapado com um sabugo de sorgo para não vazar. O pato então é suspenso

pela cabeça sobre o forno, que deve manter uma temperatura entre 300 a 325 graus. O

calor faz com que a água se transforme em vapor e o cozinhe lentamente por dentro, ao

passo que o fogo do forno (que como o amigo brasileiro pode ver, é aberto) vai assando

sua pele. Esta é pincelada com a própria graxa, o que lhe confere o brilho característico.

Não usamos nem mel nem qualquer outro condimento, além de sal como fazem maus

cozinheiros (quase todos capitulacionistas) que fugiram para as terras dos brancos. . .

- Só isso? Não tem nenhum segredinho especial?

Sem relutar ele revela:

- Tem sim, o do material empregado para queimar: usamos apenas lenha de pereira,

pessegueiro ou de palmeira.

- Por quê?

- Porque não fazem chama, produzem quase nenhuma fumaça e conferem-lhe seu

sabor inconfundível. . .

Essa, pois, a história do pato. Qualquer outra versão não passará de mera e

insidiosa manobra revisionista.

Na volta ao Hotel, quase na confluência da Fuyou com a avenida Chang An, o

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

tráfego está interrompido. Já passa das dez horas, mas como o dia seguinte é de festas, há

uma compacta multidão nas ruas. Buzinando intermitentemente nosso motorista avança

para seu rumo, o caminho aberto por guardas vestidos de branco. O povo se afasta e

podemos vislumbrar os vestígios do primeiro acidente de trânsito que vimos na China, uma

bicicleta reduzida a sucata e ao seu lado uma grande poça de sangue. Cinco guardas

efetuam, com trenas, o levantamento do local. Silencioso e com os olhos muito abertos, o

povo assiste a seu trabalho. Com duzentos e cinqüenta milhões de bicicletas e com a

recente invasão das grandes cidades, especialmente Pequim, por automóveis e ônibus, é de

estranhar-se que não haja maior número de desastres. O ciclista chinês é altamente

imprudente (isso nós constatamos por toda a parte) e julga-se o único dono da rua. Essa

uma das razões que motivam o buzinar sem fim de todos os veículos a motor. A bicicleta

constituía um dos mais altos degraus no estágio da ambição do chinês, mas agora, com a

superprodução de petróleo, as motos começam aparecer. E é de imaginar-se o que não há

de ser o trânsito de Shangai, Cantão e Pequim daqui a um par de anos, caso, naturalmente,

o processo de desenvolvimento chinês não seja interrompido por guerras internas ou

externas. A visão daquela bicicleta esfacelada e do sangue de seu dono (teria morrido na

hora? Ou quem sabe, devidamente acupunturado, está sendo agora submetido a uma

operação? . . .) me faz lembrar uma história, igualmente triste que li há pouco na obra

insuspeita e muito atualizada de Alain Peyrefitte* sobre a China e que nessa noite, em que

tudo nos parecia tão feliz e tão farto, deve ser lembrado para que tenhas presente que a

realidade chinesa não se constitui apenas de patos laqueados, sorrisos amáveis e liberdade

absoluta de encomiar o presidente Mao. Ei-la:

O agente que controla o cruzamento apita. Um ciclista de Pequim acaba de

ultrapassar o sinal vermelho: ele se volta furtivamente e torna a pisar no pedal. Segundo

apito. Antes que o ciclista possa percorrer um metro, os pedestres correm da calçada ao seu

encontro, obrigando-o a apear e o cercando com hostilidade, enquanto esperam o policial.

Este diz apenas uma palavra em tom moderado, manda a multidão afastar-se e convida o

ciclista a partir.

Nem multa, nem repreensão. A cena se desfaz como por encanto, tão rapidamente

como havia se originado. O policial-militar volta às suas funções. Apenas anota uma breve

indicação.

Na manhã seguinte, no momento de partir para a fábrica de tecidos onde trabalha, o

(*) - Alain Peyrefitte - "Quand la Chine s'eveillera. . ." Ed. Fayard. Paris.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

ciclista imprudente vê entrar em seu pequeno alojamento um membro do Comitê

Revolucionário do bloco do quarteirão. Sob um tom severo ele o repreende por sua atitude

da véspera e lhe dá longa lição de moral. É grave ter ultrapassado o sinal vermelho. É

grave não ter parado ao primeiro sinal de apito. É grave ter desencadeado a cólera das

massas populares, animadas pelo sopro revolucionário do pensamento de Mao-Tsé-Tung.

É mais grave ainda não ter-se dado conta da gravidade de sua conduta.

O ciclista sente-se torturado. Ele vai atrasar-se. Seu atraso aumenta e ele mede as

conseqüências. Quando o responsável do Comitê Revolucionário permite-lhe enfim partir,

nosso ciclista, cada vez que vai ter de enfrentar. Chegando à fábrica meia hora depois do

fechamento do ponto, é interpelado pelo contra-mestre. Ele dá a sua explicação e é

obrigado a expor sua conduta diante dos responsáveis pelo Comitê Revolucionário da

Fábrica. Ali ele é repreendido pelo atraso, pelo prejuízo que ele dá à produção da fábrica,

pela sombra que ele fez cair sobre a boa reputação da fábrica, etc. Nos dias seguintes o

pesadelo se amplifica. Um membro do Comitê Revolucionário de seu bairro, um

responsável do Partido, vão a seu trabalho e o advertem a domicílio. Diante de seus

companheiros de trabalho, diante de seus vizinhos de apartamento, ele deve entregar-se a

uma autocrítica, na qual ele é energicamente ajudado.

E conclui Peyrefitte: «Essa história verdadeira, que se assemelha a um conto de

Kafka e que aconteceu em Pequim em 1967, foi-me contada por uma testemunha direta.

Milhares de casos semelhantes provavelmente acontecem todos os dias. Todos os

chineses são identificados, enquadrados, seguidos de perto. Os cativos, quando são

libertados, continuam a ser controlados tão estreitamente como quando estavam

encarcerados. Da prisão fechada à prisão aberta, da prisão aberta à liberdade vigiada, não

há outra coisa senão nuances. Ninguém na China pode escapar ao sistema».

Na esquina da principal avenida de Pequim, a poça de sangue e a bicicleta

esfacelada, na noite de 19 de outubro de 1975. . .

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

A novela da múmia

Às cinco da manhã de sábado, 3 de outubro, o telefone me acorda, do outro lado é

Mi:

- Está na horra de levantarr, senhorr Gomes!

- Mas, Mi, digo eu, esbugalhado de sono, o avião só sai às nove e meia. . .

- E o amigo não vai fazerr ginástica? Não vai aprontarr a mala?

- Tá bem, Mi. Vou fazer ginástica, vou aprontar a mala.

A ginástica que eu faço é precisamente aprontando a mala, isto é, jogando em seu

interior tudo o que andava esparramado em meio à sujeira encardida que caracteriza todos

os quartos de todos os hotéis da China, em cujos banheiros, como já foi dito, todas as

caixas d'água das latrinas vazam, sem exceção.

Nos dias ou às vésperas de todos os cinco deslocamentos para cinco cidades

diferentes, que realizamos durante as nossas duas semanas de China, o ritual foi sempre

aquele: as malas na frente, numa condução especial todas elas devidamente identificadas

com o nome de cada um - e nós, horas mais tarde noutro ônibus. O encontro entre nós e

nossos pertences acontecia sempre uma hora antes do avião decolar, ocasião em que quase

todos pagavam excesso, já que a CACC (Companhia de Aviação Civil da China) permite o

máximo de quinze quilos de bagagem. Àquela manhã, efetuaríamos o nosso segundo vôo

dentro do país, desta feita rumo à Chang Sha, em cuja província de Hu Nan, Mao-Tsé-

Tung nasceu em 1893. A viagem fora programada não só para conhecermos a aldeia natal

do deus vivo da China, mas para visitarmos o famoso Museu da múmia, no caso a

marquesa de Tai, da Dinastia Han do Oeste, ali morta alguns milênios antes de Mao ter

nascido ou seja por volta do século II Antes de Cristo. Dentro da inteligente Política

Chinesa de conservar os achados arqueológicos nos lugares onde são encontrados, a

marqueza jazia onde tinha sido sepultada, isto é, em Chang Sha. Essa descoberta se

constitui um dos acontecimentos arqueológicos mais fascinantes de toda a história da

humanidade, superior ao das mais famosas múmias do Egito, exceto Tutankamon. Ê que ao

contrário dos faraós, cujos corpos foram encontrados secos e desvicerados, a múmia da

marquesa ficou durante 2.100 anos preservada úmida, com praticamente todas as vísceras

intactas. A bem da justiça, deve-se dizer que a arqueologia chinesa, depois da revolução de

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

1949 (ou libertação, como eles dizem), fez progressos fabulosos.

Não seria essa a minha primeira observação arqueológica na China. Dias antes,

pouco depois de termos chegado a Pequim e quando voltávamos da visita à Grande

Muralha, havíamos percorrido demoradamente a tumba de um dos treze reis da dinastia

Ming. Para lá chegarmos, andamos primeiro por uma estrada única no mundo – ao longo

da qual e. por dezenas de quilômetros, enormes camelos, leões, cavalos, dragões de pedra e

outros animais desconhecidos, postados em ambos os lados do caminho dão passagem ao

visitante. Ê a via sagrada que leva a uma colina onde se situam treze túmulos de antigos

imperadores chineses. Assim como os egípcios, depois do saque inicial de suas pirâmides,

passaram a ser enterrados em sítios secretos no Vale dos Reis, assim também procederam

os imperadores da antiguidade chinesa. Com a diferença que a sorte ou a prudência lhes

proporcionou. Ao passo que praticamente todos os túmulos egípcios foram pilhados,

menos o de Tutankamon, as tumbas dos chineses permaneceram intactas até a revolução

comunista. Embora o povo tivesse uma vaga lembrança oral de que ali se encontravam

enterrados treze imperadores (muitos dos quais com boa parte da corte), ninguém tinha

conseguido localizá-los. Até hoje apenas dois mausoléus foram descobertos: o do

imperador Yong Le e do imperador Wan Li. Dos dois, este foi o único completamente

escavado. Num verdadeiro palácio subterrâneo, composto de várias dependências

estanques, cada uma isolada da outra por gigantescas portas de mármore, jaziam os restos

de Wan Li e das duas imperatrizes com quem casou e que ali tinham sido sepultadas antes

dele. Os corpos estavam reduzidos praticamente a nada, mas as riquezas - em sua grande

parte ouro, jade e pedras preciosas, foram encontradas intactas. Pela abundância do que

acompanhou Wan Li na morte, bem podemos supor como não viveu. . .

- Semprre explorrando o povo- acrescenta Mi

. .. e das maravilhas que ainda aguardam os pesquisadores chineses quando

conseguirem dar à luz os outros doze túmulos-palácios, dos quais o segundo (o de Yong

Le) começa a ser desenterrado.

Enquanto isso não acontece, embarcamos numa espécie de Dart Herald e

começamos a voar para o sul, rumo ao coração de uma das principais zonas arrozeiras da

China: Chang Sha. Ali chegamos depois de pouco mais de hora e meia de vôo, seguindo

direto para o hotel isolado no meio de um parque, onde pela primeira vez nos livramos da

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

onipresença das buzinas que caracteriza as grandes cidades chinesas. Chang Sha não

merece esse qualificativo, pois não ultrapassa 800.000 habitantes, que se dedicam a

centenas de indústrias de porte médio, especialmente as de beneficiamento de arroz, chá,

madeira e têxteis. No Hotel há a primeira confissão pública do governo relativo ao fracasso

de uma de suas metas: mosquiteiros, não só contra pernilongos, mas também contra as

moscas que, pelo menos ali conseguiram triunfar sobre o pensamento de Mao.

Em compensação, os colchões, a respeito de cuja fofisse todos se queixavam e que

já haviam causado estragos em diversas colunas vertebrais da expedição, não constituem

problema, simplesmente por não existirem. Em seu lugar, tábua. E sobre a tábua, em vez

de lençóis ou cobertores, toalhas. No banheiro (sem ducha, só imersão), a patente, como

sempre, vaza.

Mas na sala de recepção, a conversa é muito boa, o chá verde, o orgulho dos

anfitriões enorme, não só por receberem gente de geografia tão distante, como por

representarem a província natal do grande presidente Mao...

- e a múmia, quando é que vamos ver? - pergunta já irritada com tanto oba oba ao

grande líder, uma velha senhora, natural do Rio de Janeiro e que na hora do almoço havia

ficado de mal comigo pois eu a contrariara (com muitos modos e boa educação), afirmando

que ela estava errada e que não era goma-laca que passavam no pato de Pequim para que

ficasse laqueado; e sim sua própria gordura.

E antes que Mi ou Liu traduzissem e respondessem, acrescentou:

- Eu tenho verdadeira adoração por múmias! . . .

Cogitei tratar-se de manifestação de puro narcicismo, mas nada disse, enquanto os

presidente dos Comitês Revolucionário e do Partido de Hu Nan continuavam narrando as

peripécias do velho Mao desde que, jovem ainda, deixara sua aldeia para libertar a China

da mão dos feudalistas e imperialistas que a exploravam. . .

Num Museu de linhas modernas, todo dotado de perfeito ar condicionado, jaz a

marqueza de Tai, da dinastia Han do Oeste. Ela foi encontrada faz apenas dois anos, numa

colina, a três quilômetros do centro de Chang Sha e sua descoberta deixou perplexo o

mundo científico. Dias antes, em Pequim, nos fora exibido um filme colorido a respeito da

exploração, localização dos ataúdes, autópsia e exames médico-laboratoriais procedidos no

cadáver. Este, para ser preservado, obedeceu a processos pela primeira vez observados

pelos pesquisadores do passado. O corpo foi completamente comprimido por cinco

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vestidos e faixas, que expulsaram o oxigênio das entranhas. Feito o que, colocado dentro

do primeiro de uma série de três esquifes, um encaixado dentro do outro. Os caixões foram

depositados dentro de um gigantesco ataúde de cedro e este enterrado a uma profundidade

de vinte metros e meio, protegido em todas as faces por camadas alternadas de carvão

vegetal e argila branca. Quando o túmulo, por acaso como quase todo achado

arqueológico, foi descoberto, chamaram a Chang Sha os maiores especialistas chineses que

procederam como verdadeiros cientistas tanto na inumação como no exame da múmia.

Esta foi levada a laboratórios especiais e ali alvo dos mais sofisticados exames. Tudo isso o

documentário que tínhamos visto mostrou em minúcias, inclusive, o exame dos restos

contidos no estômago do cadáver, nada menos de cento e cinqüenta caroços de melão.

- Cento e cinqüenta e meio - corrige Liu.

Quase todos os órgãos estavam conservados, tanto os internos como grande parte

do cérebro e as vísceras, tudo devido à absoluta ausência de oxigênio durante os 2.100

anos em que a marquesa permaneceu enterrada. Tinha 50 anos de idade, era calva (foi

sepultada com peruca, que já naquela época era conhecida), mantinha apenas 16 dentes e

tinha tido vários processos de tuberculose que seu próprio organismo havia curado.

Todos os despojos da múmia estão conservados em líquido especial dentro de

caixões de vidro e expostos ao público, bem como milhares de objetos preciosos

encontrados nos sarcófagos.

A realidade é que em 1973 foi encontrada em Chung Sha a múmia úmida mais bem

preservada da história da humanidade - e seu estômago continha cento e cinqüenta e meio

caroços de melão - fruta desconhecida na região e somente consumida pela Corte de

Pequim. Investigações posteriores de documentos dignos de fé revelaram que o marquês de

Tai, marido da múmia tinha sido vendedor de queijo na região, repentinamente promovido

a marquês.

Como?

Por quê?

De que maneira?

Àquela noite depois do jantar, sentado no pátio do hotel o médico René Fernandes,

o bacharel Roberto Machado de Campos e eu tentamos dar asas à nossa imaginação e aos

nossos conhecimentos de ficção científica arqueológica e reconstituir uma história

plausível para a vida e a morte da Marquesa. O resultado a que chegamos foi esse: Era uma

vez uma jovem concubina do Celestial Imperador que teve a ventura de dar-lhe um filho.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Morta de ciúmes, a legítima Imperatriz (que era estéril) mandou que sicários fiéis

transportassem a moça para a mais longínqua região sul do império e ali a matassem. A

ordem foi quase cumprida, após dois meses de viagem, quando a sinistra caravana chegou

a Chang Sha. Ali, à beira de um despenhadeiro, atiraram-na ao abismo. Por um desses

felizes acasos tão comuns na China do passado como nas novelas de televisão do presente,

um providencial galho aparou a desgraçada em meio caminho para a morte, salvando-a de

terrível destino. Ali ficou a pobrezinha gemendo e penando durante dois dias, ainda mais

devido ao fato de ter fraturado o braço (detalhe revelado na radiografia da múmia). Foi

então que o proletário Tai passou pelas imediações, afim de arrebanhar as cabras das quais

tirava leite para fazer queijo. Ouvindo os gemidos (cada vez mais débeis) da dependurada

criatura, Tai dirigiu-se ao local onde deparou com a horrível cena. Bondoso por índole e

convicção, o queijeiro recolheu a moça deixou de fazer queijo durante uma semana até que

ela se recuperasse e, aturdido por tão grande beleza, pediu-a em casamento. Embora

relutante, lembrando-se ainda dos confortos da corte – mas morta de medo da imperatriz -

ela acabou por concordar.

Casaram-se e foram felizes. Ela se tornou uma queijeira de mão cheia, mas nas

noites de verão acordava com suspiros:

- Ah, que saudades daqueles melõezinhos lá da Corte!. . .

- Melão? O que é isso? – despertava interrogativo o queijeiro. Ela explicava que era

uma fruta assim e que só os nobres comiam, etc. No outro dia, madrugada ainda, o pobre o

Tai preparava um queijo em forma de melão e o apresentava à amada tão logo ela se

levantava do catre encardido onde dormiam. Ela sorria, fazia-lhe um bilu-bilu e

murmurava:

- Perfeitinho, perfeitinho, só faltam-lhe o gosto e as sementinhas. . .

Passaram-se os anos. Um belo dia o Império Celestial é abalado pela espantosa

nova: o Imperador tinha morrido!.. .

- Viva o novo Imperador! - bradou Tai, saltando da cama. E devidamente instruído

pela mulher, com uma provisão de queijos para três meses, rumou a pé para Pequim. Por

todas as informações que ambos haviam recebido o novo imperador seria o filho da mulher

de Tai com o velho imperador morto. Na realidade era isso mesmo. Bem, aí o Tai, depois

de mil e uma peripécias (e aqui poderíamos encher trinta e quatro capítulos de novelas em

TV) acabou por chegar a Pequim onde depois de um mês de chá de cadeira, acabou por ser

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

recebido pelo filho de sua mulher, aliás o novo Imperador.

- O que desejas, oh! vil queijeiro de Chang Sha?

- Majestade, vou contar uma história que vos proporcionará felicidade, mas antes o

Celestial Imperador vai assinar um documento prometendo que não me matará se nela não

acreditar.

O Imperador, que naquele dia estava de particular bom humor, resolveu ouvir o

queijeiro:

- Está bem, desembucha. Mas ligeiro que devo cuidar dos negócios do Império.

O indigitado (porém persistente) Tai contou então todo o drama, desde os gemidos

da moça dependurada até a sua revelação final de que era mãe do novo Imperador.

O Imperador ficou lívido e bateu palmas:

- Guardas! Matem-no!

O queijeiro então mostrou-lhe o documento:

- Não se esqueça que Vossa Celestial Alteza assinou antecipadamente meu perdão.

Visivelmente mal humorado o Imperador concordou com o perdão. Aí, num desses

ímpetos de coragem que caracterizam os grandes queijeiros, Tai subiu os degraus em cima

dos quais o Imperador estava empoleirado em seu trono, chegou-lhe ao ouvido e

cochichou-lhe algo que fez o Senhor da China estremecer. Mais ou menos o seguinte:

- Vossa Majestade tem dois sinaizinhos assim, um em cada lado da protuberância

glútea, o da direita em forma de coração e o da esquerda parecido com uma estrela. . .

- Mamãe!. . .

Imediatamente promoveu o queijeiro a Marquês cumulou-o de presentes e mandou-

o de volta a Chang-Sha, com lembrança à mamãe juntamente com uma caravana carregada

de carretas de melões. Estes nunca mais faltaram à nova (e finalmente feliz) marquesa, que

morreu com as sementes de um dos quais no bucho - onde as conservou (como prova de

gratidão ao filho) exatamente por dois mil e cem anos. . .

Depois de tanta coisa incrível que já vimos na China é bem possível que a

Verdadeira História da Marquesa de Tai seja essa mesmo. Pelo menos na televisão todos

nela acreditariam e, certamente, verteriam sentidas e honestas lágrimas.

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A Meca chinesa

A Província aqui se chama Hu Nam. Tem 24.000 quilômetros quadrados e quarenta

milhões de habitantes. Estamos no sudoeste e quase no miolo da China. A região é

subtropical e o arroz sua principal fonte de produção. Desses quarenta milhões de homens,

mulheres e crianças que se concentram numa superfície doze vezes menor do que o Rio

Grande do Sul - vejo muitíssimos nessa viagem à vila de Shao Shan, a 104 quilômetros de

ônibus de Chang Sha. Por todo o trajeto, um formigueiro humano, muitas vezes

numericamente assustador. Tanto na ida como na volta desfila uma paisagem social que até

então não tinha visto nem nos cartazes nem nas ruas de Pequim nem nas fotos coloridas da

revista China Reconstrói. É aqui que se localiza a alma e o gens deste país de agricultores:

em seu interior. Pela primeira vez vejo gente descalça - mas ninguém esfarrapado,

ninguém pedindo esmola em qualquer das inúmeras aldeias que atravessamos. Como

sempre, não me fazem restrições: posso bater fotos e gravar o que quiser. O que gravo

mais, porém, está aqui ainda em minhas retinas: homens e mulheres, com uma espécie de

canga no pescoço, puxando carroças com cargas pesadíssimas; um enterro de camponês, o

féretro numa carrocinha conduzida por um homem e uma criança, o caixão de madeira

tosca e crua; um carrinho de mão empurrado por um rapaz, contendo duas gaiolas cheias

de serpentes - e o arrozal. Arroz brotando à beira da estrada e se estendendo até o infinito

que meus olhos alcançam. Arroz sendo tratado como se fosse uma haste de ouro, com

diamantes incrustados na ponta, talo carinho com que muda por muda é cuidada. Consta,

até, que, à falta de inseticidas, certas pragas que o assaltam são exterminadas à unha - do

que não duvido. Como não duvido que os arrozais, concentrados nestes cento e poucos

quilômetros e com suas duas colheitas anuais, sejam capazes de matar a fome e fornecer

energia não só para os quarenta milhões de habitantes de Hu Nam como para grande parte

da China.

Esse mérito a revolução de Mão-Tse-Tung teve: desde que os comunistas se

apossaram do poder, a China não mais passou fome como aconteria atualmente na União

Soviética, não fossem as importações maciças de grão que os russos vem efetuando dos

países do mundo ocidental, notadamente Estados Unidos, Canadá e Austrália.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Na China, a agricultura até agora tem funcionado e, se bem que de maneira

modesta, alimentando uma população que soma cerca de 25% do total dos habitantes da

terra. Por isso, mesmo apesar de toda a despersonalização a que foi submetido, o povo não

deixa de ser grato a alguém que não permitiu até agora que se repetissem cenas como essa

narrada por Jack Belden *:

. . . «As estradas estavam cheias de corpos. Na primavera de 1942, os brotos das

árvores foram comidos pelo povo esfamiado. As cascas de cada árvore foram devoradas e

seus troncos tinham uma estranha aparência branca, como se fossem gente despojada de

suas vestes. Em alguns lugares, o povo comia excrementos do bicho da seda. Em outros,

uma estranha argila branca. Mas essa alimentação somente constituía uma ilusão para o seu

sofrimento e em poucos dias as vítimas morriam. . .

Os que sobreviviam foram-se tornando cada vez mais fracos e, mesmo nas áreas

onde havia água e chovia, estavam débeis demais para poder arar ou plantar. Essa espécie

de fome é comum na China, onde é conhecida como fome sucessiva,».

E acentua o repórter americano em seu dramático relato:

«Eu ficava envergonhado de ver o contraste entre essas cenas e as dos generais do

Kuomitang (liderados por Chiang Kai Shek), saboreando delicatesses em suas abundantes

mesas, enquanto os camponeses escavavam a terra à procura de qualquer raiz que pudesse

ser digerida por seus miseráveis estômagos. Mas eu fiquei mais envergonhado - e

dominado por um sentimento de repugnância quando soube que esses mesmos generais do

Kuomitang estavam comprando as terras dos camponeses moribundos, que não podiam

pagar seus impostos para então explorá-las mais tarde». . .

Não há dúvidas que o povo chinês teve muitos e muitos motivos para rebelar-se

contra seus compatriotas ou estrangeiros que durante séculos o exploraram; mas a fome foi

o principal.

O caldo de cultura, pois, estava preparado. Faltava apenas alguém que o agitasse

para que seu fermento atingisse a explosão, esparramando-se por toda a China e, em sua

enxurrada, afogasse ou corresse para fora de seu território aqueles que, impunemente,

vinham explorando o país em proveito próprio. Esse alguém nasceu em 1893 naquela

casinha ali embaixo, no meio do vale de Shao Shan, onde chegamos agora, e que os

chineses reverenciam mais do que os cristãos a Belém ou os maometanos a Meca. Filho de

camponês que possui sua boa casa própria e que se dedicava à lavoura e à comercialização

de grãos (sendo, portanto, considerado como quase rico em seu meio), o jovem Mao,

(*) - Jack Belden - China Shakes the World (New York: Monthly Review Press, 1971)

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apesar disso, rebelou-se contra o que viu em sua volta e buscou inspiração no marxismo.

Bolou um comunismo à chinesa, fundamentado nas massas camponesas que ele tão bem

conhecia (e que passou a manipular) e não no operariado fabril das grandes cidades, por

sinal pouco expressivo na China de então ante o número assustador dos homens do campo.

O ônibus pára diante de um hotel e daí, a pé, até a casa térrea, de tijolos aparentes e

telhas marrom-escuro três dormitórios, uma sala, banheiro e dependências anexas para os

animais domésticos - onde Mao nasceu e que desde sua ascensão ao poder foi transformada

em museu.

Nossos guias, todos no mais exaltado estado de graça, extasiam-se ante a visão do

templo máximo do comunismo chinês. Em Liu, as lágrimas chegam a correr dos olhos.. .

Mi não nos acompanhou na excursão: suas delicadas coronárias vermelhas talvez

não resistissem a tamanha emoção.

Filas de centenas e centenas de chineses abrem alas para que os amigos

estrangeiros possam percorrer, uma a uma, as dependências do presépio do homem que,

segundo eles, livrou a China da fome e da opressão. Com o que concordo. Especialmente

com a primeira assertiva. Quanto à segunda, guardo, prudentemente as minhas dúvidas.

Enquanto isso, Liu começa a traduzir as explicações da guarda da casa-museu.

- . . . durante a guerra civil os reacionários do Kuomitang incendiaram a casa do

presidente Mao, mas o povo de Shao Shan a reconstruiu e a preservará para sempre. . .

Voltamos ao cair da tarde, a paisagem humana é a mesma, os arrozais ainda

infestados de camponeses, muitos dos quais se dedicam à tarefa de sua irrigação. Um

homem ou uma mulher, com um travessão às costas, na ponta do qual estão dependurados

dois baldes de madeira cheios d'água aproxima-se de um grupo que logo o cerca. Então,

cada um com uma haste, em cuja ponta está fixada uma espécie de cuia de madeira,

mergulha-a no balde e vai despejá-la na área mais próxima. Mais adiante, meninos e

meninas fazem girar com seus pés uma roda de madeira que puxa a água de um açude,

despejando-a no arrozal de hastes curtas, mas já dobrando ao peso dos seus grãos. Volta e

meia, ao lado da estrada cruza um homem de traços e aparência fina, com o mesmo

travessão às costas, os mesmos baldes dependurados, só que, em vez de água, transporta

fezes humanas mergulhadas em palha, destinadas à adubação. Geralmente - pelo menos foi

o que me afirmaram - os destinados a tal trabalho são intelectuais da cidade, transferidos

para o campo a fim de se reeducarem e aprenderem a ser humildes como o povo o é...

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Tanto na volta como na ida, milhares de árvores chegam a obstruir a visão dos

campos, tão grande a sua quantidade. A China, desde a revolução, empenhou-se num

tremendo plano de reflorestamento e consta que cinqüenta milhões de hectares já foram

arborizados.

Agora uma aldeia, casas todas de taipa, uma de tijolo queimado, um mini-trator

com o motor aberto. . .

Apesar da propalada mecanização da agricultura chinesa, 99% da força que vi

dedicada à lavoura nessa viagem a Shao Shan - foi a humana.

De mais a mais, aqui a pergunta que se impõe: se, por acaso, a China conseguir

mecanizar totalmente a sua lavoura, o que fazer com a mão de obra substituída pelas

máquinas?...

Jantamos ao começo da noite, mas o programa não prevê folga. Meia hora mais

tarde, já estamos no principal teatro da cidade, onde vamos conhecer uma das maiores

especialidades da Chang Sha, que a torna famosa em toda a China: o seu teatro de

marionetes. Diante de uma platéia deslumbrada, dividida mais ou menos em partes iguais

entre adultos e crianças, o espetáculo se desenrola dentro de uma nova técnica que até

então eu desconhecia: marionetes superpostos a slides que de tão perfeitos parecem

paisagens naturais.

No intervalo (o espetáculo dura duas horas), as crianças vão ao saguão tomar

sorvete ou beber refresco, acompanhadas pelos pais ou avós. Como em toda a China, todos

vestem da mesma maneira, o homem só é distinguido da mulher pela altura do corte do

cabelo ou pelas feições mais ou menos delicadas. Mas em Chang Sha, o que me chama

mais atenção - principalmente por estarmos no coração da China - é a quantidade de

senhoras de mais de cinqüenta anos a caminhar sobre seus pés deformados que não medem

mais do que oito ou dez centímetros.

Por quantas coisas já passou esse povo, meu Deus! Quanto preconceito, quanto

sofrimento e não apenas impostos pelos que os oprimiram, mas também por seus próprios

costumes que obrigavam as mães a enfaixar suas filhinhas, inflingindo-lhes durante anos a

fio dores que nem sequer podemos imaginar, para que quando ficassem moças tivessem os

pés pequenos que agradassem aos mandarins e inspirassem seu erotismo e sua

concupiscência. . .

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

O último quadro da representação é, talvez mais do que todos os anteriores, uma

fábula altamente ilustrativa. Uma cegonha procura, por todas as maneiras, bicar uma

tartaruga e, possivelmente, matá-la para comer. A tartaruga ora se refugia dentro d'água,

ora galga uma pedra, com o inimigo sempre no encalço. A cegonha bica atrás, a tartaruga

esconde o rabo. Bica na frente, ela recolhe a cabeça. Finalmente cansa e olha para o alto

para ver um bando de andorinhas passar. Ê nesse momento que a tartaruga voa literalmente

para cima da pedra onde está o pernalta distraído, salta-lhe ao pescoço; e o mata.

Moral da história projetada simultaneamente na tela em caracteres chineses e que

Liu se apressa exultante em traduzir:

Humilha-te sempre que for preciso, mas tem paciência - que acabarás pegando o

inimigo desprevenido. As crianças chinesas adoraram a história. Seus pais e avós, muito

mais.

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Um repórter acupunturado

Em companhia de ilustre médico da melhor sociedade carioca, cujo nome (como

diria Cervantes e atendendo a seus insistentes pedidos) não devo lembrar, «nem brinca,

rapaz: a Associação Médica desabaria em cima de mim» estou me dirigindo ao Hospital do

Povo de Changa Shan para sermos acupunturados.

O doutor em questão padecia de pertinaz torcicolo, o pescoço, nos últimos dias

inclinado fortemente para o lado e para a direita, como galo velho em posição de dormir, e

eu, além de estar com a coluna e a ciática totalmente doloridas, devido à moleza dos

colchões de Shangai e de Pequim, fazia quase uma semana que padecia de insônia, não

conseguindo dormir mais de duas horas por noite. Como havíamos lido e sido informados

que a acupuntura poderia resolver tais males e, também, imbuídos da curiosidade, a qual,

como se sabe, é a mãe de todas as ciências e de toda a sabedoria, conversamos

demoradamente o Mi e obtivemos sua aquiescência para a operação.

São oito horas da noite, terminamos de jantar - «não tem importância, vocês podem

comer à vontade, que não faz mal nenhum» - e lá vamos pelas ruas mal iluminadas da

capital de Hu Nam, rumo à Grande Experiência. Viajamos num táxi com as cortinas das

janelas como sempre brancas e como sempre fechadas, nós dois no banco de trás e Mi ao

lado do motorista, na frente. Pelo trajeto, desfilam as casas e a população pobre de Chang

Sha. Faz calor e, como acontece também nas cidades do interior do Brasil, há muita gente

sentada diante da porta de suas casas, todas térreas, tomando a fresca, ouvindo rádios

portáteis e fazendo hora para dormir.

O hospital é pobre e de aspecto sujo como o meio que o circunda. É térreo,

cinzento, e se situa isolado em meio a um parque de olmos e ciprestes. Seu saguão de

entrada é mal iluminado, não há balcões de recepção, apenas uma dúzia de cadeiras na sala

retangular, da qual saem dois corredores, um para a direita outro para esquerda. Alto-

falantes invisíveis alternam música chinesa com palavras monótonas, entre as quais,

eventualmente, se destaca o nome de Mao-Tsé-Tung. Mi pede que sentemos só um

momentinho e em seguida volta acompanhado de um cavalheiro de aspecto simpático,

aparentando seus cinqüenta anos, calças azuis, tênis e avental branco três quartos. Ele entra

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de mãos dadas com um menininho e saúda os amigos brasileiros, à disposição dos quais ali

está. É o médico acupunturista «homem de muita ciência», segundo nos fala Mi e que saiu

de casa, trazendo consigo o filho, especialmente para nos atender.

Convida-nos para a clássica sala de chá e ali, enquanto fumamos e bebemos a

infusão, ele, o Mi e logo mais uma doutora, passam a nos ouvir atentamente. Primeiro o

nosso médico (tendo se certificado antes de que eu estava com o gravador desligado) expõe

as suas mazelas e as suas esperanças. Depois é a minha vez: e, mais com vistas aos

ensinamentos que dela poderão colher os pósteros - ligo o gravador e desabafo:

- Não consigo dormir, e não é só apenas devido ao barulho e aos mosquitos. Já

tenho dificuldades em caminhar, tanto me doe a coluna. . .

O médico e a médica, atentos à tradução que Mi vai fazendo crivam-me de

perguntas:

- Há quanto tempo tem dores? Que idade tem? Já realizou algum tratamento? Qual

foi? Já fez radiografia? Elas não acusaram cariticação?

- O que, Mi?

- Carificação, Senhorr Gomes: umas pequenas adesões cárcio.

- Ah! calcificação. " Sim, diz a eles que sim.

- Pressão tem?

- Tenho. Sete por doze.

Há uma grande discussão entre o tradutor e os médicos. Mi resume as suas

conclusões:

- Não é possível!

- É sim, Mi, pode perguntar ao dr. João Fernandes, em Porto Alegre, Brasil:

mínima se-te e máxima do-ze.

Nova conferência, depois uma risada geral:

- Ah!. .. o senhorr Gomes quer dizer 70 por 120.

- Bem. Acho que botando um zero à direita dá isso mesmo.. .

- Ótimo. vamos passar para a outra sala.

Passamos para a outra sala, idêntica à primeira, com a diferença de possuir uma

cama para exame clínico e, à esquerda, uma mesinha sobre a qual há uma caixa de metal

cheia de agulhas. São elas.

Sentamos em duas cadeiras de vime e os médicos perguntaram se estamos prontos.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

- Tem que tirar a roupa e se deitar?

- Não. Assim como estão, sentados como estão. Quem quer primeiro?

E eu sem esperar segunda pergunta:

- Primeiro o doutor ali, que é colega de vocês. . .

O médico chinês, aproxima-se de meu companheiro, examina o músculo

engorgitado, duro e entumecido que obriga o pescoço a torcer-se, baixa ligeiramente o

colarinho de sua camisa e volta para a caixa das agulhas, onde pinça três delas, agarrando-

as pelo cabo cobreado com o polegar e o indicador.

Volta para o paciente, pincela a região que vai ser perfurada com algodão embebido

em álcool e - zás num questão de segundos meu amigo está com três agulhas

profundamente cravadas em três pontos diferentes da parte posterior do pescoço.

Desligo o gravador:

- Que tal; doeu, doutor?

- Você está com o gravador desligado?

- Estou.

- Então vou te dizer: sujeito pusilânime não agüenta isso.

Não se sente nada quando a agulha entra, mas depois. . . - e a máscara de dor

estampada em seu rosto se encarrega de dizer o resto. Olho, preocupado e esperançoso,

para meu relógio: quem sabe se eu sair bem ligeiro agora ainda pego o fim do primeiro ato

do Teatro de Marionetes?

Mas crio coragem, afinal sou gaúcho do Rio Grande do Sul. . .

- Pode dizer aos doutores que estou pronto, Mi.

A partir daquele momento, começo a servir de palco para a dança das agulhas

acupunturais. A exemplo daquele louco americano que se suicidou com veneno e com

gravador ligado narrou seus momentos finais até a morte, assim faço eu, registrando na

cassete o que vejo e o que sinto. Em minha própria carne.

Os dois médicos se põem a minha frente e começam a falar:

- Você não deve ter medo, pois não vai sentir nada, apenas um ligeiro formigueiro e

uma sensação de inchaço e de calor. Depois ficará completamente aliviado. Mas não se

esqueça: para curar-se do que tem, uma só aplicação não vai adiantar. Poderá aliviar-lhe as

dores e eliminar-lhe a insônia por um curto período mas, para ficar completamente bom,

deverá continuar o tratamento.

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- Mi, pergunta para eles se essas agulhas estão desinfetadas, se não tem perigo de se

pegar uma hepatite?

- Uma quê?

- Uma doença que dá no fígado e que deixa a gente todo amarelo como vocês. . .

Mi custa a compreender, mas finalmente traduz e já responde.

- Eles dizem que não. As agulhas são autoclavadas.

- OK. Estou à disposição da ciência. . .

Não sinto absolutamente nada quando ele me aplica primeiro uma agulha de cada

lado do pescoço, depois a terceira em meio a duas vértebras cervicais. Em seguida, o

doutor manda que eu levante o punho da camisa do braço direito e baixe a meia do pé

esquerdo e, respectivamente, num ponto a quatro ou cinco centímetros acima do pulso e

noutro, na metade do músculo interior da perna, crava mais duas agulhas. Essas (eu as

vejo), entram profundamente na epiderme, creio que mais de uma polegada.

- Doeu?

- Nada.

Mal tinha concluído minha negativa, quando os cinco pontos começaram a latejar, a

formigar, a me dar a impressão de que estavam enormemente inchados - e a doer.

- Quanto tempo tenho de ficar assim, Mi?

- Quinze minutos.

Os doutores saíram com Mi, a criança ficou na sala brincando com um revólver de

plástico, eu comecei a ver tudo encarnado. Uns cinco minutos depois, voltaram e

começaram a torcer, manualmente, uma a uma, todas as agulhas. A perna esquerda doía

muito, quase que de maneira insuportável.

Nós estávamos sendo acupunturados da maneira mais primitiva, já que atualmente

as torções (que outra coisa não fazem do que transmitir impulsos aos nervos) são

substituídas por uma corrente elétrica contínua de fraca voltagem, conforme tínhamos visto

nas operações a que assistíramos em Shangai.

- Mi, diz a ele que não dá mais para agüentar a dor na perna esquerda!. . .

O médico ouve a reclamação e, imediatamente, retira a agulha. Imediatamente,

também, aplica-a com a mesma profundidade em ponto idêntico da perna direita. . .

E ali ficamos, o médico brasileiro e eu, vítimas voluntárias de uma das incontáveis

experiências (e elas não se desenvolvem apenas na medicina) que estão sendo realizadas

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nesse fabuloso laboratório humano que é a China.

Vinte minutos depois (não foram quinze, ah, não!) nos tiram as agulhas. A dor

passa por completo, resta apenas um formigamento que logo se desvaneceu enquanto

tomávamos o chá de despedida e pagávamos a consulta: meio yuan para cada um, ou seja

três cruzeiros e cinqüenta centavos, isso porque o médico tinha saído de casa

especialmente para nos atender. . .

à nossa volta ao hotel, todos queriam saber como foi, doeu, não doeu, vocês são

mesmo é dois malucos - mas a verdade é que o torcicolo do médico tinha desaparecido

quase que inteiramente. Por outro lado, minhas dores na coluna (e dos pontos de

acupuntura que, para falar a verdade, chegaram a me causar mais mal do que o que

originara sua aplicação) também tinham cessado. Quanto à insônia, bem já são nove da

noite, os amigos não vão me levar a mal (bocejo), mas hoje eu levantei muito cedo (novo e

mais longo bocejo) e não agüento mais de sono. . .

Subo para o quarto, a muito custo me dispo e visto o pijama, me enrolo na toalha

que serve de lençol e cobertor ao mesmo tempo - e fecho o mosquiteiro.

Ao longe, bem ao longe, além do bosque que cerca o hotel, ouço o som de um

violino. . .

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Sexo

Na tarde de domingo, 5 de outubro, nos embrenhamos ainda mais dentro da China.

Desta feita, viajamos num bimotor ligeiramente caquético, em direção da fronteira com o

Vietnã do Norte. Uma hora de vôo e no meio do caminha descemos. O aeroporto, muito

modesto, mas sempre com o retrato gigantesco do presidente Mao a saudar os que chegam

e a despedir-se das que partem, é o Kwelin, cidadezinha de 320.000 habitantes, centro da

região autônoma de Tchouang. Cidade histórica, com sua origem remontando a mais de

dois séculos antes da nossa era, Kwelin foi uma das bases de resistência durante a invasão

japonesa, mas seu maior mérito reside na beleza natural que a envolve. Na sala de chá da

hotel onde nos alojam (e que é um dos melhores em que até então nos tínhamos

hospedado), os representantes do Comitê da Partido e do Comitê Revolucionário louvam

os encantos com que a natureza dotou a região, mas aos quais somente foi dada a devida

importância depois da ascensão do presidente Mao ao poder. Dizem eles que há trezentos e

sessenta milhões de anos, tudo aquilo era fundo lio mar, o qual, ao recuar, deixou uma

camada calcárea de centenas de metros. Esta após séculos de erosão, fez com que Kwelin

se transformasse num cenário fascinante, crivado de montanhas degoladas e que

constituem uma das paisagens mais bonitas que eu jamais tinha visto. Àquela altura

havíamos ultrapassado a primeira metade de nosso programa de viagens pela China. Na

verdade, já nos encontramos na curva descendente. A escala (e a longa permanência em

Kwelin, onde iríamos ficar durante três dias) nos seria dada como férias a escolares que se

comportaram bem durante os exaustivos itinerários anteriores, durante os quais

cumprimos, rigorosamente, visitas todas as manhãs, todas as tardes e todas as noites.

Pura ilusão. Tão logo a lavagem cerebral de boas vindas e os primeiros tubos de

chá são absorvidos, e nem tendo as malas ainda chegado, já nos determinaram um

programa obrigatório - o de visitar uma das milhares de cavernas que existem

respectivamente sob cada uma das montanhas de Kwelin.

Embora eu não seja muito aficionado em matéria de cavernas (cuja visão pensei

tinha completado com a visita que, anos atrás, fiz às Grutas de Han na Bélgica), lá vou eu,

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numerado, rotulado e despersonalizado graças ao aliciante mimetismo chinês, junto com o

grupo, para percorrer um dos orgulhos da região: a caverna das sete estrelas. O ônibus nos

deixa no sopé da montanha, galgamos duzentos e tantos degraus e depois mergulhamos nas

entranhas da terra, a guia e tradutora desta feita é a Liu.

Devemos andar sempre em bando, para não nos perdermos e, à entrada, procedem

minuciosamente a nossa contagem, que deverá coincidir com o número dos que saírem lá

do outro lado, a um quilômetro de distância. Faz frio, é úmido, a gruta é imensa, mas não

tem nem estalactites nem estalagmites, o que não deixa de demonstrar sua relativa

juventude. Liu nos explica que se trata do antigo leito do mar e mais tarde de um rio, a

prova é que a rocha está recheada de vestígios de ostras e de toda a sorte de conchas. Seus

recantos de maior beleza são iluminados por luzes verdes, azuis e vermelhas. Motivos,

figuras e cenas os mais diversos nos são taxativamente apontados pelos exegetas da

caverna que nos acompanham. Qualquer coisa assim como o teste de Rorschach.

Ora é aquela rocha que parece um abacaxi (e que na verdade não se assemelha a

coisa nenhuma), ora uma protuberância que parece um foguete e, lá ao alto, todo

iluminado. . .

- Ah! que presépio tão bonito - exclama a velha senhora que adora múmias.

Reparem só a perfeição: os três Reis Magos, José, Maria, o Menino, os boizinhos, as

vaquinhas. . .

- Nada disso - atalha a guia, devidamente inteirada da interpretação. E esclarece: a

cena representa três latifundiários feudais e impiedosos tirando os animais do casal

camponês e de seu filhinho que não tinham dinheiro para pagar impostos. Aliás, a respeito

nosso grande presidente Mao disse. . .

Desligo o gravador, para mim por hoje chega de gruta.

Exclusivamente agrícola até a revolução, Kwelin começou ultimamente a

industrializar-se. O que mais orgulha seus habitantes é a fábrica de seda da cidade, que

emprega 2.400 operários e que está produzindo 240.000 metros de tecido por dia. Durante

mais de duas horas percorremos suas instalações, desde o pátio de entrada, onde se

empilham pirâmides de sacos, contendo os casulos do bicho da seda e empestando o ar

com cheiro de peixe em decomposição - até a fase final de tecelagem, estamparia e

acabamento do produto. A maioria da produção se destina (segundo eles) ao consumo

interno do país, não restando mais de 20% para a exportação. Na sala de chá-e-de-crítica-e-

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

autocrítica de despedida, explicam-nos que a Fábrica, como tudo na China, é administrada,

orientada e dirigida pelo Comitê do Partido Comunista, ao qual está subordinado o Comitê

Revolucionário. Este é integrado por operários, técnicos e dirigentes e mantém entre si um

equilíbrio numérico entre jovens, homens de meia idade e trabalhadores veteranos, eleitos

por seus companheiros de fábrica. Eles somente podem integrar o Comitê Revolucionário

depois de terem tido seus nomes aprovados pelo Comitê do Partido Comunista, que é quem

manda na China.

- Quantos membros tem o Partido Comunista Chinês?

- Trinta milhões.

- Não é pouco, numa população de novecentos milhões ?

- Talvez, mas não é fácil ingressar em suas fileiras. Só aqueles que conhecem

profundamente o marxismo e passaram por todas as provas.

Não posso imaginar (nem acho que ficaria bem perguntar) que espécie de provas

seriam aquelas, mas tenho interesse em mais duas informações:

- Dos 2.400 operários, quantos são escolhidos anualmente pelos Comitês

respectivos para poder estudar nas Universidades?

- Cinco.

- Quantos dias de férias os operários têm por ano?

- Um dia por semana, mais os festejos do 19 de outubro (de 3 a 4 dias). Se, porém,

o trabalhador viver numa cidade e sua mulher noutra, ele poderá ser beneficiado com 12

dias. Se trabalhar extra mais dez domingos ficará, então, com vinte e dois dias.

Ao meu lado, um engenheiro paulista me segreda:

- É pena que muita gente boa no Brasil não possa ouvir essa conversa. . .

À noite, apesar dos mosquitos, sentamos ao lado de um chafariz (inativo) diante da

porta de entrada do hotel. Seu hall e demais dependências estão tomados por búlgaros que,

como nós (e dentro da quota mensal de 1.000 turistas estrangeiros autorizada pelo

governo), estão descobrindo os misteriosos caminhos da China. Depois de tantos dias de

viagem em comum, já somos como que uma grande família, segundo há pouco sentenciou

o dr. René Fernandes, que com a cabeça encostada num pilar e o corpo estirado sobre as

bordas da fonte, filosofa asiática e descansadamente. Já jantamos, são apenas oito horas e

não há absolutamente o que fazer. É quando chega Michel, que se aproxima por trás de Liu

e a tenta abraçar. Liu se esgueira como enguia e, depois de ligeira escaramuça, consegue

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escapar de nosso Dom Juan:

- Não é nada, não, Liu. Apenas uma demonstração de amizade carioca, para com os

amigos chineses. . .

- Nós, em nosso país não admitimos essas liberdades - diz ela, furiosa. E se retira

lacrimejante. A conversa, daí em diante, gira sobre a questão do sexo na China, algo que

(pelo menos na aparência) é absolutamente inexistente antes do matrimônio. A propósito,

lembro de um trecho do livro de Harrison Salisbury* que há pouco li e vou buscá-lo no

quarto e traduzo para os amigos brasileiro. Diz o seguinte, contando a experiência de um

grupo de estudantes sino-americano que visitaram a China:

. . . «John colocou seu braço sobre meus ombros conta uma moça da Universidade

da Califórnia. Aquilo não queria dizer nada, era apenas o jeito de John. Foi então que ouvi

um chinês que por nós passava dizer:

- Olhem aquele casal! Vejam que barbaridade estão fazendo! Candy (outra

estudante) observou que os chineses são completamente assexuados no que diz respeito a

relações entre moços e moças. John concluiu que os chineses sublimaram tanto o sexo, que

não pode haver comparação entre eles e os ocidentais. Eles se mantém ocupados durante

todo o tempo e desde a madrugada até a noite, se dedicam a exercícios e atividades

exaustivas. Nas horas vagas, entregam-se a trabalhos em grupo, leituras e competições

atléticas. Eles não têm tempo nem energia para o sexo. Quando perguntamos aos nossos

colegas da Universidade de Pequim sobre o homossexualismo na China eles se mostraram

extremamente chocados - ofendidos é o termo melhor. Eles simplesmente não sabiam que

tal coisa existia e não admitiam falar a respeito».

Ao que o jornalista do New York Times acrescenta suas próprias conclusões (com

as quais, modesta, porém integralmente concordo) :

«Nem decreto nem insistência ao conformismo podem eliminar as profundas tendências fisiológicas

inerentes ao ser humano. Uma atitude universal de que não podei existir o homossexualismo não o elimina.

Especialmente em um país como a China. Basta percorrer os clássicos da literatura chinesa, para perceber

que o amor entre homens e entre mulheres foi um elemento constante na sociedade desde as turvas origens de

sua história. Os clássicos chineses fazem pouca ou nenhuma distinção entre o amor de um homem por outro

homem - ou, com mais freqüência, entre o amor de um homem adulto e um rapaz bonito - e o amor entre um

homem e uma bela mulher. De fato, julgando por tais descrições, esse relacionamento dá a impressão de ter

sido muito comum, não. merecendo o opróbrio social. Na verdade, tal literatura era largamente ligada às

classes ricas ou nobres, mas não há evidências de que o homossexualismo não fosse reconhecido e praticado

entre todas as classes da China. Para ser honesto, eu não poderia outra coisa fazer, senão imaginar quão

duradoura há de ser essa atitude de espanto, horror e repulsão que aparentam contra o homossexualismo.

(*) - Harrison E. Salisbury - To Peking and Beyond - Arrow Books - Londres, 1973.

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Ela me dá a impressão de ser mais cosmético do que base. Isso obviamente não

significa que não exista homossexualismo na China. Significa simplesmente que - no

presente- não há homossexualismo aberto, porque a sociedade chinesa não só não permite

nenhuma de suas manifestações, como se nega a admitir a possibilidade de sua

ocorrência».

E conclui Salisbury:

As autoridades chinesas com as quais falei a respeito, disseram admitir sem

reservas o fato da pureza dos jovens de ambos os sexos, no caso, sua virgindade física. Na

realidade, acredito que a sociedade chinesa professe um código moral que é precisamente o

que Mao-Tsé-Tung proclamou para suas tropas durante sua Longa Marcha. E a evidência é

de que tanto Mao como a revolução cultural inundaram a China com uma maré de

moralidade».

Ao que - e só para terminar de ilustrar o assunto acrescenta Robert Guillain* que:

«o bom comunista chinês coloca o amor após as necessidade da produção e sabe, mesmo

que os dois são inconciliáveis. O amor é importuno, pois perturba a produção, faz com que

o trabalhador seja irregular, solapa sua. energia e o faz perder seu zelo político. De

qualquer maneira, o registro de vigilância mútua torna as infrações difíceis. O despiste às

vezes acontece, mas logo é detectado e denunciado, num clima de repressão anti-sexual

que, em certos casos, provoca dramas e mesmo suicídios».

São pouco mais do que nove horas; e vamos dormir. Quando cruzo o corredor não

capto nenhuma música ao longe. Mas, do quarto de Liu, me parecem partir soluços. . .

* - Robert Gnillain "Dans 30 ans Ia Chine" - Ed. Senil - Paris, 1965.

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A longa descida pelo rio

Puxada por um rebocador, uma chata desce lentamente o Li Jiang, que deixa suas

águas límpidas correrem em direção à fronteira do Vietnã do Norte. A água é tão

transparente que se enxerga o leito, composto de seixos e o rio se espreme entre cadeias de

montanhas que o escoltam em todo seu caminho. Ê uma das paisagens mais bonitas da

China e talvez do mundo inteiro, o planeta ainda quase em seu primitivismo, como que

brotando da infância, os seres humanos que vemos no percurso como que se situando no

mesmo estágio. Nem para eles nem para o rio Li Jiang, a revolução de 1949 e muito menos

sua sucessora, a revolução cultural de 1966, parece ainda ter chegado. Homens e mulheres

rudes e velhos encarquilhados como raízes singelamente nos saúdam, batendo palmas

entusiasmados quando passamos; o que quase não vemos são crianças. Casas de taipa, de

tijolo cru ou de pedra se agacham às margens, em cuja parte fronteira ancoram ou partem

ou chegam curiosas embarcações. Elas se assemelham às jangadas do nordeste brasileiro,

construídas com cinco varas de um bambu gordo, com mais de quinze centímetros de

diâmetro, fortemente ligadas entre si, com uns cinco ou seis metros de comprimento. Só

permitem montaria para um homem, o qual, com pequeno remo ou simplesmente com uma

vara, consegue manobrá-las, com extrema perícia. Em todo o itinerário o rio não dá a

impressão de ter mais de dois metros de profundidade e, em certos trechos, o casco da

chata raspa seu fundo. A embarcação tem três andares, o de baixo destinado à cozinha e

depósito e os dois superiores, o primeiro com cadeiras de vime e o último com bancos

paralelos, servem para transportar os a1mrigos' 6straingeriros) que desde a descoberta da

paisagem de Kwelin visitam incessantemente a cidade. Hoje, por exemplo,

compartilhamos a excursão com um grupo de búlgaros que, contrariando o que deles se

poderia supor - sentam-se à direita, deixando a esquerda para os brasileiros. . .

A uns cento e cinqüenta metros à frente e nos puxando com um cabo de aço, lá vai

o rebocador, apitando nas curvas e batendo seu sino à medida que cruza por outras

embarcações. Essas, em sua maioria são constituídas por comboios formados por três,

quatro, cinco e às vezes seis chatas, carregadas de produtos da terra - arroz, bambu, sorgo -

que sobem o correntoso rio movidas exclusivamente à força humana. Jamais poderia

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imaginar que existisse maneira semelhante de propulsão aquática, na qual o homem faz

mais força e se sacrifica muito mais do que qualquer besta de carga. É assim: num pequeno

caíque, dois homens, um remando e outro segurando um cabo ligado ao primeiro dos

barcos da flotilha, navegam rio acima. Chegando a uma distância de aproximadamente

quinhentos metros, fixam a sirga firmemente numa pedra ou a ancoram e fazem sinal para

a chata inicial. Então, em seu tombadilho, um grupo de dez a doze homens, mulheres e

crianças, vão fazendo girar o cilindro - o cabrestante, colocado em posição horizontal -

uma espécie de bobina gigante, em torno do qual vão enrolando a corda de aço fazendo

com que a embarcação, muito penosamente, vá vencendo a correnteza e subindo o rio.

Paralelamente, à margem esquerda, outro grupo, constituído por idêntico número de

criaturas, como se fossem animais de tração, puxa outro cabo, preso a seus pescoços como

cangas. . . Não é uma cena isolada. Durante todas as oito horas de viagem que gastamos

descendo o Li Jiang a mesma visão se repetiu dezenas, centenas de vezes, chegando a

identificar-se com a própria paisagem física do rio de Kwelin, uma das mais dramáticas

que jamais vi.

Aproveito uma pausa entre as cantorias com que os brasileiros patrioticamente

homenageavam os búlgaros (Mamãe eu quero; Lig-Li-Lé, etc.) e me sento ao lado de Liu.

Falta-me recolher, ainda, alguns dados sobre a China e ela bem que poderia fornecê-los.

Assim, por exemplo:

- Como é que funcionam os salários aqui na China, hein Liu?

Ela fala como se tivesse a lição de cor na ponta da língua e explica:

- Há oito níveis salariais dos quais o mais alto não pode ultrapassar em oito ou, em

alguns casos, dez vezes o menor de todos. Um operário, por exemplo, começa a trabalhar

ganhando de 20 a 35 yuans (repetindo: um dólar = 1,90 yuans), ao passo que os veteranos

podem chegar a atingir até 200 yuans por mês.

- De que dependem os oito níveis?

- De técnica, da capacidade de trabalho e do tempo de serviço de cada um.

- Mas dá para viver com um salário de 35 yuans? (ou seja, cerca de Cr$ 160,00 no

câmbio atual do Brasil). Dá mesmo, Liu?

- Esse salário é geralmente ganho por um jovem, que mora em dormitórios comuns

e come em cantinas coletivas. Se for casado, soma o salário com o da mulher. O governo o

subvenciona com muita coisa, como assistência médica, medicamentos, barbeiro, papel

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higiênico, etc. . .

- E, você, quanto ganha, Liu?

- Ganho 60 e meu marido 72 yuans. O aluguel de nosso apartamento é de 6 yuans

(o aluguel não pode nunca ultrapassar 5% do salário da família). A comida, como você viu,

é muito barata, a roupa também. Esses trajes que todos nós usamos e que vocês chamam de

Mao em homenagem ao nosso Grande Presidente podem ser comprados a partir de 12

yuans) que custam os confeccionados de algodão. Há alguns de tergal que chegam valer

até o dobro. Nós dificilmente compramos mais de duas roupas por ano. Um par de sapatos

custa quatro yuans, tem radinho de pilha que a gente encontra até por 16 yuans. Os rádios

maiores e fixos chegam a 130 yuans, quase o preço de uma bicicleta. Destas, as mais

baratas valem 140. Um relógio de pulso sai por 140, uma máquina de retrato 60, uma

camisa de boa qualidade 5 yuans. . .

- E televisor, alguém tem, Liu?

- Poucos. Os pequenininhos custam 350 yuans. Mas quase todos os edifícios tem

uma sala coletiva com um aparelho até mesmo em cores. . .

- Não há nada que seja particular? Tudo pertence mesmo ao estado?

- Sim. Mas nos campos os comuneiros costumam ser donos de suas casas. Meu

sogro, por exemplo, faz parte de uma comuna e a casa onde mora é dele, bem como uma

pequena área onde pode plantar e criar. Esses desvisionismos capitalistas, porém, deverão

acabar com o tempo.

- E essa gente que se vê vendendo sorvete em carrocinha ou balas e doces?.

- Todos cooperativados, sob o controle do estado.

- Até mesmo esses pobres homens pedalando tríciclos-táxis, que se vê muito em

Chang Sha e Kwelin?

- Claro. Entre nós todos os trabalhos são considerados dignos e iguais.

Antigamente, recolher para adubo estrume humano era visto com desprezo, hoje não. Há

muitos homens, formados até em Universidades, que se dedicam a essa tarefa. Tudo que é

feito para servir o povo é nobre.

- Por falar em Universidade, como é que o aluno tem acesso? Aliás, por que vocês

não nos proporcionaram nenhuma visita às Universidades?

E ela, sem a mínima hesitação, a lição totalmente bem decorada:

- Porque estão em férias. .. Mas, respondendo à sua primeira pergunta, o processo é

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o seguinte: Primeiro o operário ou o camponês pede registro para a Universidade no local

onde trabalha. O registro é levado então às massas, que fazem ou não fazem sua

recomendação. Em sendo feita, deve ser submetida ao Comitê do Partido Comunista que a

aprova ou não.

O barco apita numa curva mais acentuada e não sei por que me lembro do decreto

477 instituído pelo governo da revolução no Brasil. Seria ele criticado na China? . . Ou na

Rússia? . . .

- E as vagas, Liu?

- As vagas são atribuídas anualmente por comuna ou por fábrica. Temos progredido

bastante no setor do ensino, aqui na República Popular da China. Antes da libertação,

havia apenas 15% de alfabetizados, agora é o contrário: 85% sabem ler e escrever e só

15% (quase todos homens e mulheres velhos) é que continuam iletrados. O primário foi

universalizado e o secundário ainda não, temos falta de locais e de professores. Mas em

algumas cidades, como Pequim e Shangai, todos os alunos que saem do primário já podem

cursar o secundário.

- Escuta, Liu, esse negócio dos intelectuais terem que passar temporadas

obrigatórias no campo, pegando na enxada, puxando carroça ou carregando estrume

humano, é verdade ou é lenda?

- Claro que é verdade. E é muito bom para eles, que aprendem a não ser

revisionistas. Eu mesmo, uma ocasião, servi três anos inteiros numa comuna popular,

fazendo todo o serviço.

- Mas como é o processo?

- Dependendo do intelectual, deve ele (ou ela), passar de uma semana a três meses

por ano entre os camponeses, além de convocações extra por ocasião das colheitas de trigo

e de arroz, quando muitas vezes há falta de mão-de-obra.

- Tem advogados na China?

- Sei que há Universidades de Leis. . .

(Aliás, a Administração da Justiça de acordo com a última Constituição chinesa,

promulgada este ano, é algo de estarrecer). Mas voltemos ao barco, que já estamos

chegando ao fim da viagem:

- Ô Liu, como é que funciona essa história de crítica e de autocrítica?

- Olhe: se achamos que um companheiro está procedendo mal em qualquer coisa - e

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como somos amigos e humanos - nós o chamamos à parte e lhe dizemos « Você está

agindo errado. Corrija sua atitude ou seu pensamento». Aí ficamos observando-o durante

algum tempo; e se achamos que ele persiste no erro nós o denunciamos ao Comitê do

Partido Comunista que determina sua autocrítica e, conforme o caso, sua reeducação.

- Há presos políticos?

- Há. Eles exercem trabalhos forçados.

- Mais uma pergunta só, Liu: vocês podem viajar de uma cidade a outra?

- Só com licença do Comitê Revolucionário ou do Comitê do Partido da comuna ou

da fábrica ou repartição a que pertencemos.

Como disse há pouco, a paisagem física e humana e, agora, também mental que

captei em minha viagem pelo rio Li Jiang foi uma das mais impressionantes que jamais

registrei. Sob todo e qualquer aspecto.

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Incidente em Kwelin

Na aldeia de Luch Hai, onde nosso barco atracou, depois de oito horas de

navegação pelo rio Li Jiang, já nos esperava um ônibus da Luxing-She, órgão estatal do

turismo chinês. E. o percurso, por terra até Kwelin não ultrapassou uma hora e meia de

duração. Mas apesar da paisagem, não menos bela do que a do rio, não podia esquecer as

cenas que vira, os lentos barcos subindo contra a corrente à força de músculos humanos.

Quantos dias, quantas semanas, quantos meses não transcorreriam até que chegassem a

Kwelin? .. Ê bem possível que, mesmo no momento em que você me lê, lá estejam eles, o

caiquezinho avançando com o cabo de aço a ser fixado numa pedra e os homens, as

mulheres, as criancinhas, no tombadilho, e à margem a fazê-la galgar o rio correntoso. . .

Há quantos e quantos milênios esse povo, oprimido e massacrado viveu e sofreu assim,

esperando que um dia o vento leste soprasse a seu favor? . . Vejo milhões de defeitos no

regime comunista chinês - como de resto em qualquer outro semelhante - mas um mérito

indiscutível ele tem: mesmo privando seu povo da liberdade ele tornou digno o outrora

mísero ser, talvez mais bicho do que homem (os russos chamavam e ainda chamam os

chineses de macacos), humilhado permanentemente sob o tacão estrangeiro, fosse japonês,

soviético ou ocidental. Mas, filosofia ou doutrinações à parte, ali está escondido em meio

da floresta, um enorme radar, a poucos quilômetros de Kwelin. Os guias são discretos, mas

positivos: nada de fotos. O resto da cena é mais ou menos semelhante a que percorremos

dias atrás, quando visitamos a aldeia de Mao-Tsé-Tung. Arrozais a perder-se e a encher a

vista, alguns algodoais, e o que me causa um bruta surpresa: grandes plantações de

mandioca. Chego a duvidar do que vejo, sabendo a mandioca típica cultura indígena sul-

americana, mas Liu me desfaz as dúvidas:

Ê mandioca, sim. Foi trazida há anos do Paraguai, via Argentina. .. Os pés são

muito mais altos que os nossos e, segundo me informa a guia, o povo da região de Kwelin

consome sua farinha como pirão no café da manhã, que em toda a China é constituído

basicamente por sopa de arroz ou macarrão, verduras, saladas e, quando dá, um pouco de

lingüiça ou de carne de porco, cão, pato ou búfalo. . .

Só sei que às oito da noite já estamos jantados como na véspera, fazendo hora para

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dormir, junto à fonte seca do pátio do hotel. Há um movimento desusado no outro bloco do

edifício onde, por sinal, tínhamos vislumbrado quando de nossa chegada um muito bem

montado teatro. Doutor Orval, um dos líderes do grupo se dirige para o local e desaparece.

Pouco tempo depois, volta bufando de raiva:

- Fui desconsiderado! Quero voltar para a civilização! Não agüento mais isso! Não

agüento mais isso! Não acreditem vocês na fala mansa e nos sorrisos deles: são todos uns

hipócritas!

O desabafo do até então circunspecto senhor abala profundamente os amigos

brasileiros. Afinal o que teria acontecido? Mas deixemos ele mesmo prosseguir:

- Estavam fazendo uma exibição de acrobacia e mágica para os búlgaros e eu

ingênua e inocentemente fui entrando. O Mi e a Liu me viram e me convidaram para

sentar. A exibição até que estava interessante quando de repente chegou-se para mim uma

sujeita (com certeza a comissária do partido) e com gestos estúpidos e enérgicos mandou

que eu me retirasse. E explodindo mais ainda Foi um insulto! E não o tomo só contra mim,

mas contra o Sagrado Pavilhão Nacional e o Brasil inteiro!

Ora, aquela ofensa a totalidade de nossa Pátria, tão distante e tão querida a todos

nos atingiu. Grupos patrioticamente exaltados passaram a conferenciar em volta à fonte,

esquecendo até a mosquitama infernal que nos atacava, e uma decisão foi tomada por

unanimidade: ou o doutor Orval, teria sua honra (e a do Brasil) reparada ou pediríamos

para ir embora para Hong Kong no dia seguinte, apesar dos chineses continuarem retendo

os nossos passaportes. Para muitos a disposição veio a calhar, mesmo porque, para falar a

verdadeira verdade, a China já começava a nos saturar depois de doze dias de viagem, sem

conforto, sem gelo, sem ar condicionado, muito mosquito, outro tanto de sujeira, sem falar

na tradicional comida da tradicional cozinha chinesa que poucos ainda conseguiam

suportar. Uma delegação foi eleita pelas massas, os doutores Roberto e René à frente - e

Michel designado como pombo-correio para tentar penetrar no fortim dos búlgaros e

manter o primeiro contato com o inimigo. Entrementes o doutor Orval subiu para seu

quarto de onde voltou com o Livrinho Vermelho de Mao, e com o livro não tão vermelho

de Peyrefitte para provar, lendo alguns de seus trechos que estávamos de fato em meio a

bandidos: Ouçam, ouçam só esta passagem, aqui no Peyrefitte: «As técnicas do regime

maoista são piores do que as de Stalin para submeter os russos e as com que Hitler

esmagou os alemães». Ou esta aqui: «Ninguém mais dissimulado do que o chinês. Seu

gosto pela comédia é proverbial».

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A maioria concordou. E o exaltado (e ofendido) compatriota prosseguiu:

- E olhem só este pensamento do Mao, aqui no tal Livrinho, capítulo II, página 40:

Entra no raio de ação de nossa ditadura, prender, julgar e condenar certo número de

elementos contra-revolucionários ... para manter a ordem pública e defender os interesses

das massas, é necessário igualmente exercer a ditadura sobre ladrões, vagabundos,

incendiários, assassinos, bandos de mal-feitores e outros elementos perniciosos que

alterarem a ordem pública» .

Aplastados pelos pensamentos de Mao (e um tanto assustados, antecipadamente,

com as conseqüências do nosso movimento de rebeldia), passamos a aguardar ansiosos, a

volta de Michel. Como este demorasse, algumas defecções começaram a se registrar aqui e

ali, aos sussurros «eles afinal tinham razão; o que é que o doutor tinha que se meter no

meio dos búlgaros? . .» - e outras argumentações mais ou menos no mesmo diapasão

capitulacionista. E, afinal, por que não? Quem éramos nós para nos rebelarmos contra o

pensamento do Grande Presidente Mao? O doutor, afinal, era apenas nosso amigo

circunstancial, e olhe lá. O próprio Pedro, por acaso não tinha achado mais prudente negar

o Senhor e entrar vivo na segunda parte do Novo Testamento? . .

Nisto chegou Michel:

- Olha gente, negócio seguinte, foi logo falando com sua gíria carioca. O silêncio

era total, perturbado apenas pelo zumbido de esquadrilhas de mosquitos em vôo de piquê.

O negócio é que tinha havido um tremendo mal-entendido (e aí ele não soube

explicar por que), mas que tudo estava bem. A tal mulher que expulsara o doutor era, de

fato, um alta patente do Partido Comunista, só que de outra jurisdição e, segundo tudo

indicava, tinha tomado a entrada do brasileiro na platéia búlgara como provocação

revisionista. Mi, Liu e o próprio Li (todos a ela subordinados) estavam muito

constrangidos, sabe como é, mas que tudo estava bem, estava.

- Bem como, Michel?

- Não sei. Mas que está, está.

- Afinal, o que é que tu dissestes para eles durante todo esse tempo?

- Bem, eu disse que o doutor estava muito ofendido, ainda mais que adorava

mágicas e acrobatas. Assegurei também que ele não era revisionista e aí. . .

- E aí o quê?

- Aí eles foram para um canto, ficaram discutindo, enquanto eu assisti à peça

sentado numa ótima poltrona. Olhem: tem um mágico que vale a pena. . .

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Bastante aliviados com as muito convincentes explicações de nosso eficiente

pombo da paz, decidimos, patriótica e prudentemente, aguardar o fim do espetáculo e, com

ele, talvez, uma reparação à altura da ofensa. Na realidade, a exaltação geral diminuíra

muito, se bem que o ataque dos mosquitos muito aumentasse. Alguns chegaram até a

esboçar intenção de retirar-se, «amanhã as coisas se acomodam, total não vamos estragar a

amizade entre o Brasil e a China por uma bobagem dessas, o travesseiro é o maior

conselheiro», etc.

- Mas por muito menos o Brasil rompeu relações com a Rússia no governo Dutra!. .

. - espumava o doutor, ainda ofendido, e de literatura em punho.

Foi aí que apareceram Li, Mi, Liu e a comissária fatídica:

- Queremos pedir desculpas, doutor. . . - falaram Liu e Mi monocórdia e

simultaneamente. Ê que a Camarada Comissária pensou que o amigo brasileiro fosse russo.

. . Quando conseguimos explicar-lhe que se tratava de um amigo brasileiro ela

imediatamente fez a sua autocrítica e quer repeti-la para que todos ouçam. . .

A mulher começou a falar. Era alta, aparência enérgica e torcia constantemente as

mãos:

- Sou culpada de uma grave falta que poderia ter abalado a amizade entre dois

países líderes do terceiro mundo. Amanhã vou apresentar-me ao meu superior no Comitê

do Partido Comunista e pedir que me mandem para o trabalho nos esgotos a fim de me

reeducar. Prometo antecipadamente, porém, que jamais voltarei a ter atitudes imprudentes

e revisionistas como as que tive hoje. . . A lamuriosa e patética cena prolongou-se ainda

por infindáveis e constrangedores minutos. Mas no fim todos apertamos a mão e erguemos

nossas palavras à Grande Amizade entre os amigos brasileiros e os amigos chineses. E

como, segundo o Michel, o ex-ofendido doutor era louco por mágica e acrobacias, no outro

dia a representação do teatro foi dedicada exclusivamente ao nosso grupo, proibida a

entrada de qualquer búlgaro.

Numa coisa o Michel estava certo: na representação, tinha um mágico que valia a

pena.

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China, potência atômica

Chegamos a Cantão ao cair da tarde de 4_ feira, 8 de outubro. Na véspera, um

furacão havia açoitado a cidade o pior desde a libertação) segundo nos informaram - e

tivemos que ficar horas e horas, aguardando no pequeno aeroporto de Kwelin, até que a

pista onde iríamos aterrar ficasse em condições. Os pilotos chineses são de uma prudência

desconhecida entre seus colegas ocidentais e muito dificilmente decolam com mau tempo

ou se atrevem a cruzar outro céu que não seja o de brigadeiro. Enquanto esperávamos a

decolagem, observávamos o grande número de jatos de guerra estacionados em Kwelin.

Havia várias dezenas, quase todos cercados por operários debruçados sobre suas turbinas.

Alguns eram Migs antigos, mas a maioria se constituía de aparelhos mais sofisticados.

Embora não construa aeronaves comerciais (que importa dos Estados Unidos, Inglaterra e,

pretende inclusive, introduzir em suas linhas civis o Concorde franco-britânico), a China

há anos que vem fabricando caças e bombardeiros a jato e helicópteros, cujos modelos são

copiados das mais modernas versões soviéticas e americanas. Segundo o coronel francês

Claude Arnould * , a indústria aeronáutica bélica da China expandiu-se incrivelmente a

partir de 1961, quando suas fábricas de Chenyang, construídas pelas japoneses em

Maukden, às vésperas da 2ª guerra mundial, começaram produzir o F-6, cópia chinesa do

Mig-19 soviético. Progressos tornaram-se mais rápidos, e a partir de 1965 o país começou

a exportar aviões, inclusive para a Paquistão, que em março de 1965 comprou dos chineses

vinte Migs-21, capazes de desenvolver a velocidade de Mach 2, com um reator de 4,5

toneladas. Acrescenta ainda o militar e sinólogo francês que a China conhece as segredos

do Phanton II, pois recebeu vários, abatidos pelos norte-vietnamitas e que seus engenheiros

ou já instalaram ou pretendem instalar em carcaças copiadas do Mig 21 reatores do

Phanton II - a que dará à sua força aérea um caça com velocidade de Mach 2,5 (duas vezes

e meia a velocidade do som) aproximando-o assim dos mais modernos modelos

americanos e soviéticos.

Sendo verídicas tais .observações, a China seria hoje não apenas uma potência

atômica como também senhora de uma força aérea digna de respeito - e de temor.

Mas a maior surpresa que um país pobre e subdesenvolvido coma a China poderia

* - Claude Arnould - "La Chine ou le suicide des blancs" - Fayard Paris, 1972.

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ter causado ao mundo, foi a detonação em 1964 - quinze anos apenas após os comunistas

terem tomado conta do poder - de sua primeira bomba atômica, com recursos inteiramente

próprios. A partir de então, seus progressos foram espetaculares. Nem três anos eram

transcorridos e, da bomba A clássica, passaram para a de hidrogênio, cuja primeira

explodiu a 17 de julho de 1967. Daí em diante, num crescendo assustador, passaram a

aumentar não só a potência destrutiva dos engenhos, como a produzir mísseis e vetores

capazes de atingir nuclearmente a maior parte da geografia da União Soviética, inclusive

Moscou e Leningrado. Assim sendo, se bem que potência nuclear de segunda categoria em

comparação com as americanos e russos, a China não deixa de representar - em caso de

guerra - uma terrível ameaça para seu mais recente inimigo de infância que é a Rússia.

Aliás, tão grande ou maior ainda do que a preocupação chinesa para desenvolver

sua indústria e sua agricultura é seu preparativo para uma guerra nuclear preventiva. Cada

cidade chinesa, desde a imensa Shangai até a mais modesta vila, possui, sob seus alicerces,

uma outra cidade subterrânea, com capacidade para abrigar e manter durante longo tempo

praticamente toda a população do país. Disso os chineses não fazem segredo, como

segredo tampouco fazem de dotar os seus abrigos - que se situam entre uma profundidade

que varia entre 8 e 30 metros - de alimentos imperecíveis que permitem a manutenção do

povo ali refugiado durante longo tempo. O jornalista americano Harrison Salisbury, do

New York Times, que já citei anteriormente, afirma que a programa de abrigos

subterrâneos chineses «se constitui um dos maiores empreendimentos que o mundo jamais

viu. Ele faz com que a obra da Grande Muralha se transforme num brinquedo primitivo,

embora essa fosse até há pouco a maior obra de engenharia civil de todos os tempos. Os

abrigos são invisíveis para os transeuntes. Mas eles se encontram por toda a parte.

Literalmente: «Não apenas em Pequim, mas em todas as cidades que visitei - no norte,

oeste, sul e centro. A construção começou no outono de 1969, quando um ataque nuclear

russo era esperado a qualquer momento» . . .

Fui informado que cidades do porte de Shangai (13 milhões de habitantes) podem

ser evacuadas completamente em 40 minutos e de que abrigos cada vez mais profundos

estão sendo cavados no país inteiro.

Os subterrâneos antinucleares chineses foram uma das poucas coisas que não me

permitiram visitar, apesar dos insistentes pedidos que formulei aos responsáveis por nossa

viagem, desde que desembarquei em Shangai.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Não acredito na ocorrência de uma guerra entre China e União Soviética, pelo

menos em termos nucleares. A Rússia, mesmo que pulverizasse atomicamente a China,

não conseguiria exterminar nem a metade de sua população - e seria retalhada nos pontos

vitais de seu território pelas bombas de hidrogênio chinesas. Por outro lado, a improvável

ocupação do território chinês por seu vizinho e inimigo resultaria em algo assim como

outra guerra do Vietnam, mestres tradicionais que são os chineses na arte da guerrilha;

especialmente em sua própria terra. Não devemos desprezar, por outro lado, o treinamento

militar a que toda a população é submetida, desde seu exército (cujos efetivos são

estimados em cinco milhões de homens) até as forças da milícia, as tropas do Partido

Comunista e dos Comitês Revolucionários e os próprios guardas-vermelhos, que a partir

dos 12 anos de idade sabem perfeitamente manejar um fuzil, uma granada, uma

metralhadora ou uma bazuca ... Observadores ocidentais acreditam que, em caso de

emergência, a China é capaz de mobilizar em armas até duzentos milhões de homens,

mulheres e crianças, o que poderá parecer exagerado apenas para quem não conhecer o

espírito atual que fanatiza e move a maioria absoluta da população do país.

Os preparativos dos russos, se bem que contam eles com uma massa de manobra

humana bem mais modesta, não deixam de ser temíveis. Somente na Mongólia Exterior,

Moscou mantém mais de 50 divisões blindadas, mecanizadas e de infantaria, o que

representa um terço do efetivo total do exército soviético. Além disso, inúmeras bases de

lançamento de foguetes e ogivas nucleares estão apontadas para Pequim e as principais

cidades da China, ao longo dos 12.000 quilômetros de fronteiras comuns que ambos os

países mantém.

Mas a rivalidade sino-soviética não se prende unicamente a questões ideológicas ou

territoriais. Acima de qualquer outra coisa, ambos buscam a liderança e, senão, o domínio

dos países do terceiro mundo. E quanto mais aparato bélico exibirem e quanto mais

potencial demonstrarem, mais impressionarão os governos e o povo de Angola,

Moçambique, Zaire, Síria, Índia, Tchad, Portugal e até mesmo de muitas repúblicas da

América Latina. . .

Não creio na China como potência imperialista, capaz de impor pelas armas, suas

idéias. Mas não é de desprezar-se sua influência ideológica e a conseqüente exportação e

implantação de sua filosofia na maior parte dos países, que nela podem encontrar um

exemplo do triunfo sobre a exploração do capitalismo internacional.

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Cantão me parece mais pobre e mais movimentada ainda (embora tenha apenas 4

milhões de habitantes) do que a tentacular Shangai. Prédios de apartamentos de aspecto

decadente e sujo, sob os quais gente de aparência mal nutrida se movimenta como num vai

e vem de formigueiro de mil portas. Faz calor: 28 à sombra e grande número de homens

veste shorts e camiseta de física, Vários triciclos-táxis, com seu condutor transportando até

três passageiros, encontram-se pelas ruas. Os vestígios do furacão estão por toda a parte.

Árvores de aparência centenária, com a raízes expostas estão sendo afanosamente serradas

ou picadas a machado, e a lenha delas proveniente é imediatamente embalada para servir

de combustível. Ali, como em toda a China, nada se desperdiça. Mais adiante, um carro-

pipa esparge jatos de água na rua já desimpedida e imediatamente centenas de homens e

mulheres acorrem de vassoura em punho, para limpar o que escapou da lavagem. Essa é

outra constante na China: todas as cidades são lavadas e varridas, não raro três vezes por

dia. Ê uma das maneiras de dar ocupação à mão-de-obra inativa - e emprego e utilidade

para todo o mundo.

No novo hotel da cidade, recém-construído (e com alguns pavilhões ainda em fase

de acabamento) vemos também os efeitos do furacão: vidros das janelas mais altas

totalmente esfacelados e o parque interno com as flores esmagadas, os bambus derrubados,

e as folhas prematuramente mortas a redemoinhar pelos saguões. Do outro lado do parque

que o isola da rua, o grande pavilhão da Feira de Cantão, onde dentro de uma semana (e

como o faz anualmente) a China exibirá ao mundo o que de melhor sua agricultura e sua

indústria induziram em 1975, tentando novos negócios, maiores mercados e mais

exportações, em busca de divisas para fortalecer as bases materiais do incrível e assustador

mundo socialista que está construindo.

Porque, apesar de toda a sua ideologia, que vê no dinheiro algo de desprezível e até

mesmo abjecto - a China não pode viver sem ele para construir um futuro que pretende

impor a si própria e a toda a humanidade.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

A medicina tradicional chinesa

Nosso programa em Cantão compreende entre outras, uma visita a uma escola de

surdos-mudos, em cujo tratamento a China tem conseguido progressos ainda

desconhecidos no resto do mundo. A medicina tradicional chinesa, esgrimindo como arma

principal a acupuntura, orgulha-se hoje de ser tão ou mais eficiente do que a ocidental. Isso

não significa que essa seja menosprezada ou deixe de ter seus cânones e métodos aplicados

isoladamente ou em combinação com as técnicas e medicamentos nativos. Esses são em

sua maioria oriundos de vegetais; e usados desde a mais remota antigüidade. Com o

predomínio dos ocidentais a partir da Guerra do Ópio, em 1840, medicina tradicional

chinesa, seja no que diz respeito à acupuntura, seja com relação à sua farmacopéia, passou

a segundo plano, e os que dela ainda se utilizavam eram encarados como uma espécie de

curandeiros-charlatães. Mao-Tsé-Tung, já em sua Longa Marcha (quando, em 1934,

chefiando um exército de 100.000 homens percorreu durante um ano inteiro milhares de

quilômetros, fugindo da perseguição do Kuomitang de Chiang Kai Shek), tratou de

reabilitar a medicina chinesa, não só por patriotismo, mas principalmente por necessidade:

suas tropas careciam de médicos e de remédios. A partir da implantação do comunismo,

em 1949, especial ênfase foi dada à medicina clássica. Velhos alfarrábios voltaram à luz

sendo o fundamental o Pents'ao Kang-Mou, de autoria de Liu-CheTchen e editado no

século XVI*, que prescreve para a cura das doenças o emprego de 28 espécies de metais,

20 de sais e de pedras e 11 famílias de vegetais, agrupados em centenas de ervas das

montanhas, plantas odoríferas, trepadeiras, vegetais aquáticos, líquens, etc. Os grãos e

legumes também são classificados e prescritos em grande abundância, bem como os

insetos, os pássaros, os animais de sangue quente e de sangue frio, inclusive os dragões.

Destes, Liu-Che-Tchen distingue oito espécies altamente terapêuticas...

No realidade até 1953, mais de 80% dos medicamentos consumidos na China eram

importados. Poucos anos mais tarde, a República Popular se tornou não só autosuficiente

como exportadora de remédios. Até o triunfo da revolução, as condições médico-sanitárias

eram as piores possíveis. Willaim Y. Chen, membro do Serviço Público de Saúde dos

Estados Unidos, que visitou a China em 1949 escreveu que «a pobreza e a doença

prevaleciam em toda a nação. O número total de médicos modernos é estimado em 12.000,

* - Cf. Pierre Huard e Ming Wong, La Médicine Chinoise - Presses Universtaires de France - Paris, 1969.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

em quinhentos hospitais. O país só tem capacidade de graduar 500 médicos por ano, para

uma população estimada em quatrocentos milhões de habitantes». **

O progresso nesse terreno foi impressionante. O ensino da medicina foi

incrementado através de enérgicos pensamentos de Mao, hospitais proliferaram por toda a

parte, centros de saúde se instalaram nos mais diversos e remotos distritos e, em menos de

um quarto de século a medicina chinesa passou a situar-se entre as mais progressivas do

mundo, se formos levar em conta John Kenneth Galbraith* que, em 1973 afirmava estar

inclinado a acreditar que «a grande Shangai, com a população de cerca de 12 milhões de

habitantes e seus 424 hospitais com 44.000 leitos e 11.500 médicos, possui melhor serviço

do que o de Nova Yorque, inclusive na média de qualidade que é mais alta».

O que nos chama atenção na China é a falta de estatísticas. Ali, sabe-se apenas

vagamente das coisas - e a prova mais contundente a respeito do desprezo (ou do temor)

que os chineses têm pelos números é que o Último censo realizado no país data de há 22

anos. Em todo o caso, os famosos observadores de Hong Kong ousam afirmar que, entre

sanitaristas, médicos propriamente ditos (praticantes das medicinas ocidental e oriental) e

médicos-de-pés-descalços, a China possui hoje em dia um contingente de três milhões de

profissionais o que, em sendo verdade, presentaria a mais alta proporção do mundo, ou

seja, de um para cada 300 habitantes.

Os médico-de-pés-descalços mereceriam todo um tratado e bem denotam a pressa

que a China tem em resolver seus problemas. São rapazes ou moças geralmente oriundos

das comunas populares e que, nos hospitais distritais ou nas cidades, após cursos que,

dependendo da necessidade da região para onde serão destinados, estendem-se por um

mínimo de três meses até o máximo de um ano. Aprendem a conhecer os principais pontos

de acupuntura, a cultivar ervas medicamentosas e a praticar cerca de uma centena de

operações, inclusive as de apêndice, hérnia, quistos e cesarianas. Somente nos 10 distritos

de Shangai, atenderam 20 milhões de consultas no ano passado. Posteriormente à sua

formatura (em cada período de entresafra), voltam aos hospitais para se aperfeiçoarem e

assim procedem regularmente por um período que pode se estender por vários anos.

Segundo fui informado nas visitas em que realizei aos hospitais de Shangai e de Chang

Sha, há inúmeros casos de médicos-de-pés-descalços que seguiram cursos ortodoxos de

medicina, que na China tem a duração de cinco anos intensivos, e vários deles hoje são

professores universitários.

** - Cf. Joshua Hom. Await With Ali Pests - New York - Monthly
Review Press, 1969.
* - John Kenneth Galbraith - "A China Passage" - New American Library - New York, 1973.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Todo o médico, inclusive o diretor do hospital é obrigado a, uma vez por ano,

passar de um a três meses numa comuna, convivendo com os camponeses e cultivando

suas próprias ervas. A medicina e os medicamentos para o povo são quase que totalmente

subvencionados pelas comunas, cooperativas ou pelo estado, independentemente da

contribuição geral e obrigatória de cada habitante para o seu seguro saúde-medicamento

que não ultrapassa a 4 yuans) ou seja, cerca de quinze cruzeiros anuais.

A verdade é que empregando ervas e pensamentos, a medicina chinesa conseguiu

façanhas até agora não obtidas em nenhuma parte: a sífilis e as demais doenças venéreas

foram completamente eliminadas (o que é caso único no mundo inteiro) e a xistosomose,

que atacava 10 milhões de chineses está sob controle, com a quase que total eliminação de

seu caramujo portador - o que foi feito à unha. Assim, no curto período de vinte e seis

anos, a revolução de Mao eliminou dois males que caracterizam qualquer povo

subdesenvolvido e que afetavam a China mais do que qualquer outro: a fome e a doença.

Mas esse regime opressivo, de lavagem cerebral permanente, não causará distúrbios

mentais àqueles que, mesmo reconhecendo ter sido sua pátria arrancada da miséria e das

mãos dos exploradores não a encaram ainda como o mundo mais-que-perfeito?

Essa pergunta nós nos formulamos muitas vezes, e uma das integrantes do grupo

chegou a realizar pesquisa a respeito, da qual recolheu o extrato dos debates em mesa

redonda entre psiquiatras chineses e escandinavos, cuja divulgação julgo importante para

complementar este trabalho.

Assim, as seis principais causas das neuroses na China são, por ordem: 1)

dificuldades familiares; 2) repressão sexual e histórias de amor contrariado (geralmente

pelo estado); 3) insatisfação no trabalho; 4) sentimento de não produzir o suficiente, seja

nas fábricas, nas universidades ou campos; 5) relacionamento insatisfatório com colegas ou

com os chefes e 6) excesso de trabalho, sentimento de insuficiência e sentimento de

inferioridade.

Por freqüência, as doenças mentais mais comuns são a esquizofrenia, .a psicose

maníaco-depressiva, os distúrbios da menopausa, a arterioesclerose e a histeria reativa.

Os pacientes mais graves são internados durante um período que não ultrapassa

quatro meses e durante o qual são tratados através de sedativos e choques de insulina,

empregando-se acupuntura apenas no combate à sintomatologia.

Após a tratamento, são devolvidos ao seu antigo meio - e, segundo consta, há 90%

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

de êxito no tratamento.

Visitamos durante toda uma manhã uma das quatro escolas-clínicas para tratamento

de surdos-mudos existentes em Cantão. Se a recuperação de um adulto é algo que

impressiona - a de uma criança é comovente. Desses fatos não tomei conhecimento através

de literatura ou de informações de terceiros. Eu os testemunhei pessoalmente. Numa

escola, .ocupando um prédio de dois andares nos arrabaldes de Cantão, 76 professares e

assistentes se encarregam de realizar o milagre de dar som e voz a 304 meninos e meninas.

O curso tem a duração de 8 anos e vimos seus alunos-pacientes mais adiantados não só

falar como ouvir, escrever, dançar e cantar. Segundo nos informou o diretor do hospital,

76,5% das casos de surdo-mudez (congênita ou adquirida) têm sido recuperados com pleno

êxito no hospital-escola, prosseguindo as pesquisas para encontrar solução para os 24,5 dos

fracassos. Depois de visitarmos as classes e assistirmos a uma exibição dos alunos (dois

dos quais dançaram com bandeirinhas do Brasil na mão), passamos para a sala de chá e

diálogos. Estes da maior importância ainda, devido ao expressivo número de médicos

brasileiros que participavam de nosso grupo. Viajemos pelas principais perguntas e

respostas:

- A acupuntura é o único tratamento empregado?

- Ê o principal, mas os meninos tomam também medicamentos à base de chás de

ervas.

- Ê empregada a audiometria, para detectar o aumento da audição?

- Sim. Gravamos os sons de diferentes vibrações e os projetamos para os alunos

visualizarem sua capacidade de distinção. Logo que eles readquirem a audição, nada

distinguem. Para eles todo o som é um barulho incompreensivo. Passamos então a treiná-

los para entender o significado das sílabas e depois das palavras, o que demanda árduo

trabalho.

- A acupuntura é usada para combater todos os tipos de surdez?

- Sim. Mas em surdez causada por meningite não tem efeito.

- E na atrofia do nervo auditivo?

- Depende do grau. Se está necrosado, nada se consegue. Nos demais casos temos

obtido algum resultado.

- Problemas do ouvido externo, médio e interno: todos são curados?

- Sim.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

- Em quantos pontos a acupuntura é aplicada?

- Em muitos. Mas os principais se localizam em torno dos ouvidos.

- Por que alguns meninos e meninas que vimos cantando e dançando têm um

pontinho de esparadrapo debaixo das orelhas?

- Ele protege pequenas agulhas que ali deixamos ficar durante determinado período.

- Depois dos oito anos de tratamento, qual é o grau de recuperação?

- 76,5% readquirem a audição em diversos graus, alguns com maior, outros com

menor capacidade auditiva.

- Há necessidade de aplicações posteriores após o término do tratamento?

- Há. Nas fábricas para onde eles são designados existem clínicas que

periodicamente ministram-lhes a acupuntura. Ou então podem receber o mesmo tratamento

em qualquer hospital da vizinhança.

- Os adultos podem ser reabilitados?

- Nos hospitais das grandes cidades há hoje uma sessão chamada Nova Medicina,

que atende aos adultos atacados de surdez, com bons resultados. Mas, quanto mais velho o

paciente, maior a dificuldade em sua recuperação.

- Qual é a idade mínima dos meninos admitidos nessa clínica-escola?

- Oito anos.

- Uma vez concluídos os cursos, os alunos são destinados a alguma atividade

específica?

- Não. Eles passam a trabalhar como qualquer cidadão comum. Os não recuperados

são designados para uma fábrica especial para surdos-mudos.

- Essa é uma clínica experimental ou existem outras na China?

- Há várias delas em Pequim, Shangai e em outras cidades. Somente na grande

Cantão temos quatro, além de várias outras espalhadas por nossa província.

- Quais são as principais causas da surdez na China?

- Como em toda a parte, são congênitas e adquiridas em conseqüência de algum

processo mórbido. As congênitas têm como origem principal a ingestão de alguma droga

pela mãe durante a gravidez, parto difícil, casamento entre parentes próximos ou

problemas hereditários. A surdez adquirida que aqui tratamos é provocada em sua maior

parte por alguma febre muito alta ou devido ao abuso de certos remédios, ministrados em

altas doses às crianças.

- Há recuperação da oto-esclerose, comum em certas pessoas idosas?

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

- Há. Já aplicamos acupuntura em vários velhos e velhas com esse problema e

conseguimos resultados idênticos aos melhores.

- No que diz respeito à atrofia do nervo ótico: há tratamento acupuntural?

- Nossos cientistas estão tentando tratar a cegueira, mas ainda não conseguiram

resultados satisfatórios.

À saída, Liu e Mi não escondem sua satisfação pela maneira como todos ficaram

bem impressionados e alguns até comovidos, com a visita ao hospital-clínica e aos seus

espetaculares êxitos. Antes de embarcarmos no ônibus, Mi me agarra pelo braço e, os

olhos brilhantes ,faz questão de transmitir-me uma pergunta:

- Sabe o senhorr Gomes qual é a primeira coisa que os surdos-mudos dizem quando

aprendem a falar?

- Não, Mi, não sei. .. Qual é?

- Ê «Viva o nosso Grande Presidente Mao!». . .

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Visita a uma comuna popular

Nossa presença no Hospital-Escola de Cantão, quase terminou com um incidente,

que por prudência deixei de mencionar para não prejudicar a sensibilidade do leitor

(especialmente da gentil leitora) e estragar o efeito da visita. Ê que há muito tempo o nosso

Michel vinha sendo vítima de uma neurose progressiva em virtude do incessante buzinar

de todos os veículos movidos a gasolina - o que é uma das constantes mais irritantes da

China. Nos hotéis em que chegávamos, a primeira coisa que ele pedia era um quarto de

fundos. Mas, mesmo assim reclamava, pois esses eram tão barulhentos quanto os demais.

- Não agüento! Não consigo dormir! Quero ir-me embora pra Hong-Kong! -

desabafava ele, todas as manhãs, à mesa do café. E eis que chegou o momento único para a

sua catarse . Ao final da sessão de perguntas e respostas no hospital de surdos-mudos,

Michel, impávido, levantou-se e agrediu:

- O excesso de barulho não conduz a surdez?

- Em muitos casos sim - respondeu o médico. Tivemos um paciente que perdeu a

audição depois de trabalhar durante anos junto a um canhão, durante a guerra. . .

- Não. Não é isso que eu quero saber. Minha pergunta é se essa barulheira

desgraçada dos ônibus, autos e alto-falantes de vocês não pode conduzir, não só a surdez,

como ao desiquilíbrio emocional e à impotência sexual da gente? . .

Liu nem traduziu: respondeu-lhe direto:

- Claro que sim, basta olhar para você!. . .

Ao que a mulher de Michel (uma moça chinesa nascida em Macau e viajando com

passaporte português), levantou-se que nem mola, pálida e tensa:

- Não ele não! ele não. . .

Lágrimas e pano mais que rápido.

Já que não atenderam meus pedidos para conhecer os abrigos subterrâneos anti-

atômicos que transformam o solo sob as cidades e as aldeias da China num queijo gruyere,

oferecem-me, em compensação, uma visita especial a uma comuna do povo. Desde minha

chegada, tinha manifestado interesse em observar de perto essa organização, que constitui

a base de todo o sistema socialista chinês. Há cerca de 80.000 comunas agrícolas e sua

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

importância é fundamental na China, onde 80% da população vive nas zonas rurais,

cultivando uma área estimada entre 100 e 120 milhões de hectares*, dos quais extraem, por

ordem de importância arroz, trigo, algodão, cereais em geral e leguminosas. A área

agrícola corresponde a apenas 11,4% da superfície total da nação e boa parte dela - cerca

de 80 milhões de hectares - é submetida à irrigação permanente. A densidade da população

rural é uma das mais altas do mundo e a superfície cultivada se situa entre 1.400 a 1.600

m2 por habitante. Segundo o pensamento (e a determinação) de Mao-Tsé-Tung de tomar a

agricultura coletivizada como base e a indústria como fato dominante, o Partido Comunista

a partir da revolução, começou a organizar os camponeses inicialmente em grupos de ajuda

mútua, num esforço desordenado de mutirão, integrado a princípio por grupos de dezenas

de famílias. Mais tarde as equipes se constituíram em cooperativas inferiores de caráter

semi-socialista, evoluindo depois para cooperativas superiores sobre cuja base, a partir de

1958, foram estabelecidas as comunas populares. A terra passou a ser de propriedade

totalmente coletiva (exceto uma pequena área não superior a 7% do total destinada às

culturas de subsistência para cada comuneiro), o mesmo acontecendo com a maquinaria e

animais de tração.

Como tudo na China, a comuna é chefiada pelo Comitê do Partido Comunista, ao

qual está subordinado o Comitê Revolucionário - e sua organização compreende brigadas e

equipes de produção. Ê para uma delas que me dirijo agora, viajando num automóvel

particular em companhia de Li, Mi e de um motorista.

Cruzamos quarenta quilômetros através de campos de arroz e de vilarejos muito

pobres e chegamos à sede da comuna de Tching-Hua, que é uma das maiores do país,

contando com mais de setenta mil comuneiros, quando o normal são organizações que não

agrupam mais de cinco mil pessoas. À porta de um prédio branco de dois andares, somos

recebidos por Tsen Sun Kien, cinqüenta anos, responsável pelo comitê revolucionário. Ele

já fora prevenido da visita e, depois da cordial troca de cumprimentos, nos conduz à sala de

recepção do segundo andar, onde sentamos em volta de uma mesa onde nos aguarda uma

térmica com chá e vários pires de amendoim (com casca) torrado.

- Bem-vindo, amigo brasileiro que veio de tão longe começa. Permita-me que lhe

ofereça chá e amendoim, ao mesmo tempo em que conversamos. Ê um hábito de Cantão.

- Diga a ele que agradeço muito, Mi; e que tanto o chá como o amendoim estão

ótimos.

* - L'Économie Chinoise - Jan Deleyne - Sueil - Paris, 1975.

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Ê um dia bonito de sol quente e pela janela entram conversas de crianças, um que

outro som de buzina e chilrear de pardais que escaparam da matança determinada pela

revolução.

Tsen Sun Kien segue com a palavra:

- A comuna, como o amigo deve saber, é uma unidade básica do regime socialista

chinês. A nossa foi fundada em 1958. Ela abrange atualmente 15.400 famílias, num total

de 70.700 pessoas. Ê integrada por vinte e uma Brigadas de Produção' que, por sua vez são

constituídas por 329 equipes de Produção. Ocupamos uma área de 120 quilômetros

quadrados, dentro dos quais cultivamos 80.000 mus.

- Quanto é mesmo um mu, Mi?

- Quinze mus são iguais a um hectare de vocês.

- Quer dizer que 80.000 mus eqüivalem a mais ou menos a uns 5.400 hectares, não?

- Ê mais ou menos isso. Para sermos exatos: 5.444,44 hectares.

Continua o anfitrião:

- Desse total de 80.000 mus, 65.000 são destinados ao plantio do arroz. Nos

restantes cultivamos amendoim, cana-de-açúcar, soja e juta. Temos várias barragens e

açudes, nas quais criamos peixes. A comuna também possui várias pequenas indústrias que

fabricam instrumentos agrícolas, bem como fábrica de cimento, cal, açúcar e papel.

- Papel? Com que matéria-prima? Casca de arroz?

- Não com papéis velhos.

Tsen Sun Kien entra agora na doutrinação:

- Sob o domínio do Kuomitang, nossas condições eram muito más, especialmente

as hidráulicas. Os terra-tenentes de Chiang Kai Shek recolhiam o dinheiro do povo (80%

das terras pertenciam aos latifundiários) e os camponeses para viver tinham que entregar

quase toda a sua colheita aos seus exploradores, não lhes sobrando quase nada para comer.

Quando lhes faltavam cereais, de cada 100 quilos de arroz que pediam, tinham que, ao

final do ano, devolver 150. As águas não estavam disciplinadas e no seio do povo havia um

ditado: três dias sem chuva, dá seca. Três dias com chuva inundação. Levávamos todos

uma vida muito miserável e cada ano mil camponeses desertavam para a cidade. Em 1949,

com a vitória da revolução, o Partido estabeleceu grupos de ajuda mútua - e então Tsen

passa a contar a evolução do socialismo comuneiro e comunista até seu estágio atual. E

acrescenta:

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

- Criada a comuna, o presidente Mao determinou que se desse primazia à

construção de obras hidráulicas - diques, açudes e represas. E o povo que ontem dizia

colheita boa depende de obras hidráulicas boas, agora fala apenas que colheita boa ou má

depende dos adubos, pois construímos em Tching-Hua três grandes represas e 90

quilômetros de canais de irrigação, nos quais empregamos sessenta bombas. A partir daí,

nossa comuna conseguiu ultrapassar o critério determinado pelo governo no que diz

respeito à agricultura. Para essa região era prevista a produção de 400 quilos de arroz por

mu. Pois bem, algumas de nossas brigadas de produção chegaram a atingir 800 quilos por

mu, e as que menos produzem colhem 550 (o que representa 8.250 quilos de arroz por

hectare).

- Em uma ou em duas colheitas anuais?

- Em duas.

- Em que época plantam o arroz?

- Semeamos em fevereiro e transplantamos entre 20 e 25 de março.

- Muda por muda?

- Sim. Muda por muda. Então espargimos adubo sobre a plantação e a cuidamos até

começos de junho, quando colhemos. Em fins de junho, começamos a semear novamente

para o segundo plantio. Transplantamos as mudas em princípios de agosto - e colhemos

novamente em novembro.

- Que espécie de adubos vocês usam?

- Aqui na comuna, vários tipos: sulfato de amônia, água de amônia(?) e fosfato de

cálcio - todos em pequena proporção, pois são químicos e custam caro.

- E adubos orgânicos?

- Excrementos de porco e, sem dúvida, de pessoas também.

- Qual é a proporção de emprego entre os adubos animal e humano?

- Adubo de porco em primeiro lugar, com mais ou menos 70%. Adubo humano,

uns 30%. Por isso desenvolvemos a criação de porcos, conforme instrução do presidente

Mao. Ele mandou que em cada mu tivéssemos um porco, que ali funciona como uma

pequena fábrica de adubo.

- Quantos porcos vocês têm na comuna?

- Em toda a comuna 75.000. Graças à criação de porcos, resolvemos uma série de

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problemas. Quando criamos mais porcos, temos mais adubos. Quando temos mais adubos,

colhemos mais cereais. Quando colhemos mais cereais, podemos criar mais porcos. . .

- Que alimentação vocês dão para os porcos?

- Principalmente batata-doce, ramos e folhas e umas plantas aquáticas, que bóiam

em cima da água.

- Aguapés?

- Ê uma que dá uma flor roxa?

- Ê.

- Então é assim.

- Quantos quilos pesa um porco quando é abatido?

- Sessenta.

- Quanto tempo leva para alcançar esse peso?

- Precisa de nove a dez meses.

Não há imposto pessoal na China. Nas cidades, as fábricas, cooperativas, etc., são

todas administradas pelo estado. Já as comunas pagam um imposto, estabelecido sobre sua

produção de há dez anos - e como essa tem aumentado constantemente - o encargo,

anualmente, se torna menor. O imposto é em espécie. Dinheiro não circula entre comuna e

governo.

- Quanto vocês pagaram para o estado o ano passado?

- Entregamos um total de 25 milhões de jins (dois jins - um quilo). O total da nossa

produção foi de 75 milhões de jins.

- Então diz a ele que o imposto é violentíssimo, Mi. Mais do que trinta por cento!

Mi traduz e o chefe da Comuna responde:

- Não. Você não entendeu. Nós entregamos para o estado um total de vinte e cinco

milhões de jins, dos quais quatro mil e setecentos foram de impostos. O resto o estado

comprou da comuna.

- Ah, então venderam 21.300.000. . .

Mi que é muito mais forte nas matemáticas que eu, corrige prontamente:

- Não, senhorr Gomes: vinte milhões e trezentos mil.. .

- Está certo, Mi. E com o que sobra, o que fazem?

- Acumulamos em fundo de reserva para compra de materiais e equipamentos e

para o bem-estar. O que resta disso - entre 50 e às vezes até mais de 60% é distribuído

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

entre os comuneiros.

- Como?

- De acordo com a produção de cada um, aferida através de um sistema de pontos

que vai de 0 a 13. As equipes de produção se reúnem e suas massas classificam cada um de

seus integrantes dentro dessa gradação. Quem trabalha mais e produz mais, ganha mais. No

ano passado o mínimo que um comuneiro recebeu foi de trezentos e o que mais produziu

ganhou quatrocentos e cinqüenta yuans (mais ou menos dois mil e seiscentos cruzeiros

anuais).

- Aceita mais chá?

- Aceito. Obrigado.

Tsen Sun Kien termina de engolir um punhado de amendoim, serve um gole de chá

e explica mais coisas:

- Independente da renda coletiva, os comuneiros ainda recebem uma pequena

porção de terra onde podem praticar atividades secundárias e auxiliares como plantar

hortaliças, criar porcos, patos, galinhas etc. Calculamos essa sua receita extra em cerca de

10% do total que recebem por seu trabalho na comuna. A prova de que estamos

progredindo é que depois da revolução cultural os comuneiros compraram 16.000

bicicletas e 6.000 máquinas de costura.

- Que área possui cada família para cultivo?

- Entre 4 e 5% do global.

- A casa onde moram os comuneiros é deles ou da comuna?

- A casa é propriedade deles e ali levam suas vidas individuais. As terras

particulares que cultivam, porém, pertencem à comuna. Só podem delas dispor em

usufruto.

- E que acontece com a casa, quando morre o chefe da família? Há herança?

- Se o pai morrer, o filho fica com a casa.

- E se ele tiver três filhos, por exemplo?

- O pai tem direito de legar a propriedade em vida. Se não o faz, a herança é

decidida no seio da própria família. Se o dono da casa é velho, não tem parentes e morre, a

casa passa para a comuna que, no entanto, tem o dever de alimentá-lo e cuidar dele até

morrer.

- E o serviço médico, como funciona?

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

- Temos dois hospitais, 31 centro de saúde (um para cada Brigada de Produção) e

329 sanitaristas, distribuídos entre as respectivas equipes de produção. Há 22 médicos

profissionais e 126 médicos-de-pés-descalços. Esses trabalham meio turno na lavoura e

meio turno na medicina.

- O serviço médico e os medicamentos são grátis?

- Não. mas custam uma insignificância: 30 centavos por mês ou 3,60 yuans por ano

(mais ou menos dezessete cruzeiros).

- E as escolas?

- A comuna tem duas escolas secundárias de segundo ciclo e cada uma das

Brigadas uma primária e outra secundária do primeiro ciclo.

- O ensino é pago?

- É, mas muito mais barato do que antes da libertação. Um aluno primário, que

antigamente pagava 9 yuans por ano, hoje paga três. A escola secundária, que custava 27

yuans baixou a anuidade para 4 yuans. O pagamento é feito em cereais. . .

Depois de um considerável almoço, durante o qual brindamos o Brasil e a China

(sem nos esquecer de vituperar a camarilha revisionista do traidor Brejnev), visitamos o

hospital, onde dezenas de clientes eram tratados pelos médicos tradicionais chineses, que

lhes aplicavam ou ventosas ou cataplasmas de erva. Alguns estavam sendo acupunturados.

O aspecto do centro médico era pobre mas limpo. Cruzamos depois várias quadras de

arrozais e entramos no agrupamento das casas das famílias integrantes de uma equipe de

produção - um vilarejo de casas de tijolos aparentes, sem esgoto, galinhas ciscando nas

ruelas. Pela primeira vez, vi dois cachorros soltos. A maioria que tinha antes vislumbrado

estava em gaiola, engordando para o abate. Um gato (também miraculosamente solto)

miava, penso que de fome. Numa casa de dois quartos, banheiro, cisterna no pátio e bem

iluminada sala (em cuja parede pende de um lado o retrato de Mao e do outro um atlas

universal), nos recebe o comuneiro modelo, junto com sua família. Serve-nos chá e,

sentado numa cadeira de balanço conta os horrores de sua vida de antes - e as maravilhas

depois da revolução. Tem seus cinqüenta anos, é magro, rijo e a mulher e dois filhinhos

sentam ao seu lado. A casa é modesta mas muito limpa. Moscas esvoaçam e, ao longe, uma

criança chora.

- Não sou um comuneiro modelo - fala, como que adivinhando meu pensamento.

Tenho uma família de doze pessoas que moram aqui: além da minha mulher e de minha

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

mãe, meu irmão mais moço e sua mulher e meus seis filhos. . . Consegui construir minha

casa há três anos, com o auxílio de comuneiros pobres, meus amigos e meus vizinhos.

Fico sabendo então que nem na comuna o comunismo é perfeito, pois devido à

diferença da capacidade de trabalho de cada um - e do número maior ou menor de pontos

que ganham, os comuneiros são, até hoje, divididos em pobres, médios e quase ricos.

. .. - Mas isto nós vamos acabar - me garante depois o Mi.

Fala o camponês:

- Na velha sociedade não pude freqüentar escola. Hoje meus dois filhos mais velhos

completaram o segundo ciclo. . .

Viro-me para o chefe da Comuna:

- De todos os comuneiros, quantos são escolhidos por ano para freqüentar a

Universidade?

- De três a cinco. . .

De novo o comuneiro:

- Levamos uma vida boa. Temos máquina de costura e bicicleta. E, no fim de cada

ano, depois de ter pago roupa, colégio, lenha, carvão e óleo, sobram ainda 1.200 yuans

para toda a família.

- O que faz na terra que a comuna lhe empresta?

- Plantamos hortaliças e criamos galinhas e patos. No ano passado engordamos

cinco porcos. Desses vendemos (é obrigatório) 60% para o estado e consumimos o resto.

- Quantas horas trabalha por dia? Faz as refeições em casa?

- Trabalho das sete às onze horas, almoço em casa e volto para a lavoura, à tarde,

das duas às seis. São, pois, oito horas por dia.

- O que é que o senhor e sua família fazem nos dias de lazer?

- Limpamos a casa, lavamos roupa, cultivamos a nossa terra e às vezes vamos ao

distrito fazer compras.

- Sua terra particular fica junto à sua casa?

- Não. Fica a dois ou três minutos a pé daqui.

- O senhor tem rádio ou TV?

- Rádio recebemos por fio da comuna, três vezes por dia; quanto à televisão, a

equipe está juntando dinheiro para comprar uma. Mas não faz falta, pois aqui passam

cinema três vezes por mês.

- Como vivem as demais famílias da equipe de produção?

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

- Mais ou menos como nós. Eu pertenço à categoria média, Há alguns que vivem

melhor do que eu. O problema é que minha família é muito grande e dela só quatro

participam do trabalho agrícola. Por isso nossa renda não é muito alta . . .

Acho que foi mais ou menos isso que vi e ouvi na Comuna Popular de Tching-Hua,

célula mater da nova sociedade chinesa, que agora vai ficando pequenininha, até

desaparecer por completo do espelho retrovisor do nosso carro, que dela se afasta

lentamente . . . "

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

O milagre chinês

Não é sem certo alívio que vemos chegar a manhã de sexta-feira, 11 de outubro. Ê

o nosso 15? dia de China e o último de viagem: dentro em breve estaremos em Hong

Kong, sinônimo de uma civilização decadente, mas da qual a maioria de nós, mesmo um

que outro esquerdista integrante do grupo, há muito começa sentir falta. Não que seja

insuportável viver sem o conforto de quartos limpos, de roupas bem lavadas, chuveiro,

comidas facilmente identificáveis, gelo, ar condicionado e novelas de televisão. Essas,

afinal, são facilidades burguesas - e a maioria esmagadora da humanidade nem sequer as

conhece. O que mais falta parecemos sentir, é o da comunicação com o resto do mundo; e

da ausência de informações. Durante essas duas semanas de programa intensivo, o que

acontecia no exterior nos era completamente desconhecido e excetuando Jaime e sua

mulher que trabalham na rádio de Pequim, apenas falamos nosso idioma com três guias

intérpretes que não pareciam estar ligados a outra realidade que não a chinesa. Esta desfila

ainda como que nos acenando adeus através da paisagem que se estende de Cantão a Hong

Kong, de onde vamos nos aproximando num moderníssimo trem chinês, dotado de

poltronas de veludo e ar condicionado, que à alta velocidade cruza intermináveis e

verdejantes arrozais. Ali, também, como em toda parte por onde andamos, milhares de

camponeses se entregam às lidas agrícolas, dispensando à terra um carinho artesanal, como

se fosse ela o mais nobre e precioso dos elementos. Acontece que na China ela é

precisamente isso.

Já me referi ao grande mérito da revolução comunista: o de arrancar o povo de uma

miséria sem perspectiva para proporcionar-lhe uma pobreza digna, em cujo padrão com

pequenas variações para mais ou para menos vivem atualmente novecentos milhões de

chineses. Se essa revolução, que ceifou a vida de milhões de criaturas (muitos estimam que

as guerras civis e as convulsões que abalaram a China durante o último quarto de século

deixaram um saldo de cinqüenta milhões de mortos) - se tal valeu a pena, não saberia dizer.

O que sei é que ela não acabou como, provavelmente, tampouco o seu número de vítimas.

O regime socialista chinês ainda não está consolidado e a preocupação e o temor

onipresente com relação a um deslize para o revisionismo são bem prova disso. Por outro

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

lado, é inquestionável que o novo regime chinês, se bem que privando o povo de toda a

individualidade e dos mais elementares princípios de liberdade, realizou um verdadeiro

milagre quer na agricultura, quer na indústria, quer na mineração. A China de 1975, apesar

de continuar pobre e superpopulosa, é um país auto-suficiente em alimentos, possui uma

indústria que em certos aspectos e padrões se aproxima da dos países desenvolvidos e em

menos de quinze anos passou de uma produção petrolífera zero para uma previsão de 140

milhões de barris este ano e, com a descoberta de novas jazidas, de 700 milhões anuais

para o próximo qüinqüênio. Somente isso deverá proporcionar-lhe, a curto prazo, uma

receita anual de dez bilhões de dólares, dinheiro que aplicado em suas fontes primárias de

produção, deverá render dividendos insuspeitos.

Enquanto o trem corre, folheio a nova Constituição da República Popular da China,

promulgada a 17 de janeiro de 1975. Ela é composta unicamente de trinta artigos e alguns

deles me chamam dramaticamente a atenção, o 89, por exemplo:

«O Estado aplica o princípio socialista: quem não trabalha, não come» e a cada um

segundo suas capacidades, e a cada um segundo seu trabalho».

Ou o 129:

«O proletariado deve exercer sua ditadura integral sobre a burguesia no domínio da

super-estrutura, incluindo os diversos setores da cultura. A cultura e a educação, a

literatura e a arte, o esporte, a saúde pública e a pesquisa científica devem servir à política

proletária, aos operários, aos camponeses e aos soldados e ser comidos com o trabalho

produtivo».

E, finalmente, o artigo 25, que trata da administração da justiça:

«A Corte Popular Suprema, os tribunais populares locais de diversos escalões e os

tribunais especiais exercem o poder judiciário. Os tribunais populares em seus diversos

escalões são responsáveis diante das assembléias populares de escalões correspondentes e

seus órgãos permanentes, aos quais dão conta de sua atividade. Os presidentes do tribunais

em seus diversos escalões são nomeados e encarregados de suas funções pelos órgãos

permanentes das assembléias populares de escalões correspondentes. As atribuições de

promotoria cabem aos órgãos da segurança pública nos diversos escalões. Para preparar e

julgar um processo, deve-se aplicar a linha das massas. Para os casos graves de delito penal

contra-revolucionário, é preciso mobilizar as massas, para que elas os submetam à

discussão e à crítica».

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Lembro-me da resposta que, ainda em Pequim, recebi a respeito da prática jurídica

da China:

- Advogados aqui? . .

Não; não conheço nenhum. . .

Uma das facetas do milagre chinês é a de ter absorvido totalmente a mão-de-obra -

e não registrar a existência do desemprego. Como o trem leva duas horas e meia para

chegar a Hong Kong e há tempo de sobra pela frente, aproveito para reler as observações

que o grande economista americano John Kenneth Galbraith assinalou em sua obra A

China Passage. Diz Galbraith:

«Em países agrícolas densamente povoados como a China e a Índia, há três

espécies de desemprego, nomeadamente (1) O desemprego Ricardiano o qual significa

que, devido ao número desproporcional do povo com relação à terra e ao capital, não há

possibilidade de ocupação para todos; (2) o desemprego recorrente que, em virtude da

natureza da maioria das operações agrícolas, proporciona muitas horas por dia, mês ou ano

em que não há nada para fazer e (3) o desemprego disfarçado pelo qual duas ou mais

pessoas partilham de tarefas que poderiam ser realizadas por uma só. O teste do

desemprego disfarçado é positivo quando a produção não cai em virtude de faltas dos

trabalhadores extra.

Os chineses acabaram com essas três espécies de desemprego. O disfarçado e o

recorrente foram absorvidos pelas indústrias e pela mão-de-obra empregada nas comunas.

Elas ali colocam gente de temperamento preguiçoso ou que não pode ser aproveitada para

uma produção constante. Pagam menos que nos centros urbanos, mas usam pessoas que, de

outra maneira não estariam ganhando nada. Nenhum outro país atacou o problema dessas

duas espécies de desemprego - endêmica perda de mão-de-obra na Ásia - com a energia e a

imaginação dos chineses. O ataque ao desemprego Ricardiano é feito através de um

programa de maciça atividade pública - a meticulosa limpeza e reparação de ruas, a

atenção dada aos parques e jardins, que se aproximam do padrão inglês, cuidadosa

manutenção de prédios públicos, trato especial a monumentos e plantio extensivo de

árvores. A julgar pelo número de homens (e menor número de mulheres) a vestir os

disformes fardamentos do Exército de Libertação do Povo - a atividade militar deve

absorver também uma boa quantidade de mão-de-obra».

Como se vê na China há emprego para todos. Mesmo porque - e de acordo com a

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Constituição - quem não trabalha não come.

Os amigos brasileiros estão alvoroçados: a civilização se aproxima a cada

quilômetro vencido. Caderninhos correm de mão em mão, «anote aqui seu endereço, vou

mandar-lhe as cópias daquelas fotos coloridas da muralha, mas não esqueça de me enviar

as da múmia, pois acho que as minhas não saíram boas»; «olhe lá em São Paulo, minha

casa às ordens, viu?» «quando for ao Rio não deixe de aparecer, senão ficamos zangados»

- e assim por diante.

- Mas que tal a China, Roberto? E tu, René, gostaste? E tua maior impressão qual

foi, Alex?

O saldo é bem mais para positivo do que para negativo. A respeito de um detalhe,

porém, todos são unânimes: em nenhum país socialista, o estrangeiro é tratado com tanta

gentileza - e até mesmo com carinho - como fomos recebidos na China. Ê verdade que

«eles têm os defeitos deles» e que o regime pode ser bom mas apenas para chinês; no

Brasil, Deus nos acuda, que ninguém agüentaria essa chatice:

- Imagina só: levantar às cinco para fazer ginástica, passar o dia ouvindo o

pensamento do presidente, andar o tempo todo de bicicleta, não ter férias e ir para a cama

às nove, dez horas, que horror. . . - E tu, Michel?

- Olha, rapaz, desculpa - e vocês todos também - o desabafo na escola dos surdos-

mudos. Mas que não dá para agüentar a poluição sonora, não dá. Vou agora direto para o

Tahiti, onde não existem automóveis; e muito menos buzinas.

- E a senhora Travassos?

- Vou te confidenciar uma coisa: já vim seis vezes à China, mas é sempre com uma

sensação de desabafo que chego à fronteira. . .

Passada a polícia, vencida a alfândega, ambas sem quaisquer formalidades ou

inconveniências, os passaportes devolvidos, as malas liberadas, muitos fazendo esforços

desproporcionados para equilibrar na cabeça os gigantescos chapéus de plantadores de

arroz de Cantão - e pronto: cruzamos a fronteira.

Li, Mi e Liu se alinham de um lado e nós do outro, os pés cautelosamente postados

nas terras dos novos territórios da colônia britânica de Hong Kong. Li discursa, Mi e Liu

traduzem.

Apertamos as mãos, Liu beija e é beijada pelas senhoras. E chora.

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Um repórter na China Flávio Alcaraz Gomes

Chego perto dela e cochico em seu ouvido:

- Não faz isso, Liu, podem reparar. Choro é sentimento de pequeno burguês. . .

E ela, agora já em meio a indisfarçados soluços:

- Eu sei que é. Mas logo que voltar vou fazer autocrítica desse meu revisionismo. . .

Como um rebanho sobrecarregado, caminhamos às pressas para a estação inglesa

de trem para Hong Kong. Dominando a tudo, os pobres pedindo esmola, as prostitutas se

oferecendo, os malandros acenando com garrafas de uísque - um cartaz descomunal com

um letreiro maior que o maior dos pensamentos de Mao:

- Try Pepsi, the biggest!

FIM

Atlântida, Rio Grande do Sul, de 27 de outubro a 19 de novembro de 1975.


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